terça-feira, 11 de abril de 2017

Nómada. Ayaan Hirsi Ali. «Aliás, outro dia, um dos membros mais destacados de nosso clã disse que desejava debater contigo»

jdact e wikipedia

«(…) No entanto, se fosse até lá acompanhada pela polícia, isso certamente causaria ressentimentos, transmitindo a impressão de que eu não podia confiar nem na minha própria família. Segurança!, bradou meu pai. Precisa de segurança para quê? Alá vai protegê-la de todos que desejarem fazer-lhe mal! Ninguém da nossa comunidade vai encostar um dedo em si. Além disso, a nossa família nunca foi conhecida pela cobardia! Aliás, outro dia, um dos membros mais destacados de nosso clã disse que desejava debater contigo. Se quiser, posso pedir a eles que reúnam uma delegação para levá-la a Jidá, para que possa conversar com ele na Arábia Saudita! Por que não convoca uma conferência de imprensa para anunciar que não é mais uma infiel? Diga a eles que voltou ao islão e que agora é uma mulher de negócios!
Ri do meu pai em voz baixa e durante algum tempo dediquei-me apenas ao prazer de ouvi-lo falar. Então perguntei sobre a sua saúde. Ele respondeu: lembre-se, Ayaan, que a nossa saúde e a nossa vida estão nas mãos de Alá. Estou a caminho do além. O que quero, filha querida, é que leia apenas um capítulo do Alcorão. Laa-uqsim Bi-yawmi-il-qiyaama. Ele recitou, em árabe, é claro, apesar de estarmos conversando em somali, a sura da ressurreição: juro pelo Dia da Ressurreição! E juro pela alma, constante censora de si mesma, que ressuscitareis. O ser humano supõe que não lhe juntaremos os ossos? Sim! Juntar-lhos-emos, sendo Nós Poderosos para refazer-lhe as extremidades dos dedos. Mas o ser humano deseja ser ímpio, nos dias que tem à sua frente. Ele interroga Quando será o Dia da Ressurreição? Eu disse a meu pai que não mentiria para ele e que não acreditava mais no exemplo do Profeta. Ele interrompeu-me, e o tom de sua voz se tornou apaixonado, impaciente, depois admoestador. Ele leu para mim outros versos do Alcorão, traduzindo-os para o somali, e listou muitos exemplos de pessoas que tinham deixado o islão como eu, mas depois voltaram para a fé. Ele falou das hordas de não muçulmanos que se convertiam em todo o mundo e a respeito do único Deus verdadeiro; ele me alertou para não colocar em risco a minha existência no além.
Enquanto o ouvia, disse a mim mesma que aquele discurso professoral vinha de um pai que expressava o seu amor da única maneira que sabia. Queria acreditar que o facto de ele estar orientando-me significava que, em algum sentido mais profundo, ele tinha começado a perdoar-me pela pessoa que me havia tornado. Entretanto, acho que não foi nada disso. Talvez ele estivesse apenas cumprindo o seu dever. O facto de eu viver como uma ocidental significava que tinha perdido a minha honra; eu vestia roupas ocidentais, o que para ele não era melhor do que se não usasse roupa nenhuma. O pior de tudo é que eu tinha abjurado do islão e escrito um livro com o ousado e triunfante título de Infiel para proclamar a minha apostasia. Mas o meu pai sabia que a sua vida estava chegando ao fim e queria certificar-se de que todos os filhos, apesar dos seus erros, estivessem no caminho que leva ao Paraíso». In Ayaan Hirsi Ali, Nomad, From Islam to America, Nómade, tradução de Augusto Calil, Companhia das Letras, 2010, ISBN 978-858-086-374-1 e / ou In Ayaan Hirsi Ali, Nómada, Galaxia Gutenberg, 2011, ISBN 978-848-109-928-7.

Cortesia da CdasLetras/GGutenberg/JDACT