quinta-feira, 27 de abril de 2017

Meninas. Maria Teresa Horta. «A guiares-me os jeitos, a radicalizares-me as fantasias e os medos, a influenciares-me os gostos, a instigares-me à ausência apagando-me o carácter…»

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«O monstro morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era sozinha». In Clarice Lispector

Lilith
«(…) Torno a alinhar-me a par contigo: as duas sobrepostas. Travo amargo colhido no universo perverso da inocência, terreno onde o sentimento cede, condenando a transfiguração do nosso relacionamento. Fica a sobejar somente um vaguíssimo espaço de fluidos difusos onde absurdamente lenta me distendo, como se boiasse, mas afinal nadando em ti. Antecipando a fragilidade e o calor uma da outra. Mexes-te na escuridade onde sonhas e eu te navego pelo dentro mais fundo, nele batendo com a planta vulnerável dos meus pés. Aí esbracejo, mergulho e torno à superfície pretendendo salvar-me, e só o leve pulsar das veias das tuas virilhas me mostram a direcção do teu olhar turquesa, através do qual destrinço o que não adivinho. Inconstante tu, e eu obsessiva.
A guiares-me os jeitos, a radicalizares-me as fantasias e os medos, a influenciares-me os gostos, a instigares-me à ausência apagando-me o carácter, tentando reduzires-me à tua imagem e semelhança: clone que recusarei ser pelos trilhos da vida, destino fora; cidades das quais nada recordarei, nem das matas sombrias, nem dos bosques frondosos, territórios das fadas, nem das florestas enfeitiçadas, com árvores por trás das quais se acoitam animais selvagens, idênticos aos que existem nos quadros de Henri Rousseau. Num deles descobrir-te-ei, mulher nua, reclinada num canapé, a dialogar com os tigres. Lilith de um paraíso artificial, impondo regras que tudo confundem, embora me fusionem contigo.
Experimento separar-me, ciente da contaminação da tua languidez, ausência e superficialidade. Vazio rugoso que aceito de bom grado, prevendo-te tão bela que escaparás a todo o entendimento, com uma vagarosa fatalidade feminina de opalas e jaspe, maligna e ameaçadora. Vistorio a clausura em que me encerras, arrisco seguir o rasto das tuas estéreis e fúteis decisões apressadas, desconhecendo que, impaciente, me virás a afastar mais duas vezes, ao longo da nossa vida futura. Com uma negligência insustentável. Por segundos imagino-me desgraçada, errando com os teus fantasmas e, rodando, tento conseguir reencontrar a rosa-dos-ventos, os remos, a bússola, o rumo certo para tornar a achar-te, indo num impulso incontrolável moldar-me às tuas costas, desejando retomar o odor do teu pescoço suado, onde curtas madeixas frisadas aderem humedecidas, adensando o seu ouro de camélia e de madressilva. Respirar-te é um hábito que me há-de ficar. Enquanto o teu inconsciente traça planos, desenha mapas de crimes perfeitos, inventa as melhores maneiras de me assassinares, ignorando que te escuto os pensamentos, enrodilhada no danoso veneno das tuas células, dimensão do nada a que permiti ser reduzida, copiando-te os genes. No lugar que habitas deixaste-te adormecer, e ao acordares, transbordante de um amor incondicional, não te recordarás do ódio que me tiveste, ansiando por me atares de novo às tuas horas. Ponto dobrado sobre ponto dobrado.
Pesponto de bainha aberta na dobra do lençol de linho onde rolaremos enoveladas uma na outra, numa espécie de luta matricial, condenada. Lá fora a lua coalhada num céu azul-cobalto acobertará as lobas que defendem as crias, enquanto, através da poesia, tentarei descobrir a melhor maneira de te enfrentar nos dias vindouros, num divã de psicanalista, dando conta, atónita, das tantas fórmulas que em menina utilizei para te preservar de ti mesma. Sem remédio. A minha consciência trocada pela tua. Encolhida quase consigo esquecer-te, mas ao detectares a minha imobilidade estendes inquieta as longuíssimas pernas, deixando-me prisioneira. E como é hábito, acabo por ceder: desencosto a face do cimo dos joelhos unidos de lado, e pela primeira vez apercebo-me da necessidade cruciante de ar que começa a ganhar-me, encurralada mas já levada de rojo, apanhada pela corrente num revolteio imprevisível e desconhecido.
Confusa, tento inutilmente parar, controlar as contracções e os espasmos que me convocam, a arrastarem-me consigo; e é nesse instante que lanças um lento e distorcido brado, estridente e incontido na modulação convulsa, como se simultaneamente te admirasses quando o ouves. Aturdida, cuido de reencontrar o ar que entretanto deixou de circular através da tua respiração, deslizando-te na língua, curvo-me sob a pressão aflita dos dedos crispados com os quais me primes as omoplatas num abraço imobilizador, sem a preguiça dos habituais movimentos pesados aos quais nunca te adaptaste, mas a que eu aprendera a ajustar-me». In Maria Teresa Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT