quinta-feira, 27 de abril de 2017

Meninas. Maria Teresa Horta. «Águas reptis de alma vivente, e aves que voem sobre a terra, debaixo do firmamento do céu»

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«O monstro morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era sozinha». In Clarice Lispector

Lilith
«(…) Nascidas de um oceano malva, as vagas entretanto formadas sobem e avizinham-se tomando altura, submergem o que encontram, misturam-se umas nas outras, enormes e definitivas, transportando-me consigo: retalhando o tempo, galgando e descendo num equívoco escorregar tropeçado; caudal feroz, implacável, que me cega, miserável, náufraga impelida contra-vontade a negar a nossa afeição, constrangida ou oferecida ao total negrume humedecido e fervente que me cerca. Perco-me de ti. Ou serás tu que me expulsas, farta da minha obstinada presença? Imediatamente arrependo-me das recriminações, do desagrado a que cheguei a entregar-me, das dúvidas que me ocorreram a teu respeito. Recuo de desprazer, apesar de as antigas suspeitas se confirmarem: expatrias-me, apartas-te, abres mão de mim. Assim, num último assomo de revolta, desobedeço ao teu corpo: agarro-me às roseiras das suas margens, aos goivos a tua placenta, aos rubis dos teus vasos sanguíneos, deixo de respirar…
Debruço-me, finco os calcanhares no teu limoso chão, e apercebendo que me afogo cuspo, vomito, arfante, os últimos sucos. Mas nem isso me demove: acocorada, agachada nas tuas fundações suponho-me ocultada pelo vulto uterino, pelo galope apressurado do teu coração, e sufocada encosto-me, colo-me aos teus muros, presa de uma teimosia que poderá ser o fim de ambas. De longe chegam vozes desconhecidas, assustosas, os sussurros distorcidos, as ininteligíveis ordens dadas em surdina. Aterrada, sou impelida para a frente na determinação de me arrancarem à linfa nacarada e opalina do teu interior, como se me quisessem salvar de ti, para quem afinal continuo a tentar correr. Não detectando o que me dói mais, se aquilo que entendo ser o teu rejeite, se o pavor do perigo que pressinto a espreitar-me na pressa, no torvelinho que me envolve, me arremessa e arrasta. Espaço revolto por onde atordoada me atiro num delíquio, sentimento do qual desconheço o nome.
E estilhaçadas as brumas e as névoas, atinjo a luz de uma brancura incandescente que toma conta de tudo à sua volta, distorcendo a avidez, deturpando as emoções, encrespando os sentidos. Precipício na borda do qual desemboco ofuscada, apavorada com aquilo que tomo como sendo a maior de todas as ameaças. Escancaro novamente a boca para inspirar e não consigo; aflita busco a tua ajuda, mas tal como te lembro deixaste de existir. Tudo o que conhecia, aliás, já terminou: os espaços distorceram-se, as cores mudaram, as pistas confundiram-se, os sinais alteraram-se.
O frio invadiu o lugar do fogo, a doçura foi trocada pela rudeza e o embalo pela dureza desabrida. Em contrapartida, à minha passagem despontam as silvas, a perversidade das urtigas, as ervas daninhas, as garras aceradas, as acutilâncias ríspidas e fragosas, nas quais, desprotegida, me firo e corto e queimo, me pico e arranho, garganta contraída e forçada por emudecidos soluços que a violentam em haustos e depois se entrançam, e quando o grito sai e rola finalmente liberto, logo retorna ao seu começo, repetindo-se nessa urgência, transportando consigo um muco grosso que me abafa, a descortinar no palato o resto do teu dolente gosto amendoado. E sem conseguir precisar o que me cerca, ergo os braços ensanguentados, pegajosos da seiva viscosa da tua placenta, e levo os punhos fechados ao queixo molhado pelos líquidos, os líquenes da tua intimidade. Resvalando, deslizando, apercebendo-me de estar a perder a memória; mas inconsciente ainda de estar a aproximar-me, cada vez mais e mais, do perfeito abandono a que leva o nascimento.

Daninha
Depois das palavras estão as palavras, caminho ou atalho ou trilho por onde escapa o pensamento, num desassossego, num avassalamento, numa invenção de outros universos e céus antigos, onde se misturam planetas, nebulosas, mundos inventados, habitados pela estranheza dos seres mínimos ou de monstruosos animais cruentos; universos destruídos por dilúvios, tempestades, rochas incandescentes e montes, serras, cimos de vomitarem fogo. Vulcões com o seu intenso cheiro a cinzas, a lava, a enxofre. Forja de lume. E as trevas cobriram a face do abismo. Iludindo a luz com o maior negror, por onde os mares corriam num rugido insustido. Até ao separar das águas.

Águas reptis de alma vivente, e aves que voem sobre a terra, debaixo do firmamento do céu.

E a menina entra para dentro de cada palavra e existe mesmo antes de nascer e sair do lugar de claridade coada, no interior do corpo materno. Deméter? No início ela chorara muito. Ainda na barriga da mãe, porque isso é dado acontecer a quem como ela comporta a diversidade, a diferença; voraz, desacertada no mundo que a pretenderá mudar, a sufocará e a acanhará tanto, que por vezes parece querer tirar-lhe o ar do peitinho liso, de tão justa que a vida lhe fica.
Modo de ela ser na teima e no cardo da alma, a tomar para si o tumulto das alvas, dos eclipses, dos equinócios, dos espinhos e das farpas, deslizando junto dos enigmas que desconhece, dotada de um outro entendimento, de uma outra visão impossível. Gosta de olhar as constelações, estrelas de navegação e nebulosas nos mapas astrais, por onde correm os linces e as panteras da escuridade. A encontrá-las no espaço, cintilando de estrelas, de asteróides, de cometas…
Cruzeiro do Sul, Cisne e Cassiopeia».
In Maria Teresa Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT