sábado, 22 de abril de 2017

Maria Adelaide. M Teixeira-Gomes. «Francisca, deixa-me brincar contigo. Se quiseres vai buscar pão... Corri a casa: mãe…»

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«(…) O mês que durou a nova instalação foi encantador. Maria Adelaide transformava-se e assumia uma individualidade que a extremava do resto da família. Mas o arranjo do quintal, onde ela dava largas à sua fantasia, delineando planos de jardinagem e arborização que mal caberiam num grande parque, esse, então foi um poema. Eu ouvia-a embevecido, achando graça em tudo quanto dizia e facilitando quanto podia a realização do seu sonho.
Tão contente andava que não recusou, como até ali fizera, as lições de ler e escrever que eu pretendia dar-lhe. Ela andara na escola mas nem as letras do alfabeto conhecia. Nessa fase é que lhe descobri o inexaurível fundo de superstição em que a sua alma assentava, e até nisso lhe achava chiste: sonhar com flores eram penas remediadas; excrementos, dinheiro certo; as mãos dentro de água, lágrimas, etc. Uma vez, antes de nos deitarmos, eu queria que se fosse pentear e repartisse o cabelo em bandós, mas ela recusou porque era de noite e não sabia se o pai andava no mar, o que seria de mau agoiro. Uma vizinha dos Fumeiros, andando o marido na lancha, fora da barra, pôs-se a pentear uma noite, e apenas atirava à rua o molhinho de cabelos caídos, vem uma refega de vento que por pouco não mete a porta dentro. Nesse mesmo instante o marido caía no mar e por pouco não se afoga...
Também se não devem despejar os cântaros da cantareira quando há em casa algum doente em perigo de vida. As almas, tão depressa largam os corpos, e antes de seguir ao seu destino, precisam de água pronta para se lavar, e preferem a água dos cântaros por serem fundos. Outra mulher, também dos Fumeiros, estando o marido agonizante, despejou, de propósito, a água que havia em casa, deixando apenas uma gota na bacia do lavatório. Morreu o marido e logo ouviu ruído no quarto do lavatório: foi ver e achou tudo em volta salpicado de água, sem que lá estivesse alguém...

Bairro dos pescadores
A respeito destas crendices Maria Adelaide não admitia dúvidas, e se eu delas zombava, a sua testa curta, de cinco pontas, enrugava-se, com uma expressão obstinada que a tornava sombria, opaca, e os recortes perdiam toda a graça como inestético desenho tosco. Mas eu não teimava. Uma grande ternura me invadia o coração à lembrança de que a pobrezinha sofrera frios e fome e andara descalça e levara, sem dó, pancadas da mãe, e mais da mestra naquela escola de torturas onde nada aprendera e onde as lunetas da professora, sábia e solerte, a espavoriam. Agora era ela que sustentava generosamente os seus, matando-lhes fomes e frios, e a ternura penetrava-me ainda mais fundo à lembrança dos seus primeiros arranjos, no seu primeiro quarto: a cómoda pobre mas vistosa; a cama fofa, larga e limpa, e o aroma especial que ali pairava e que era natural do seu próprio corpo, da sua própria carne...
E os pitorescos episódios da sua meninice. A miúdo referia-se a uma rapariga que fora sua vizinha, era muito má e gostava de morder nas companheiras. E contava: uma vez estava ela à porta de casa, a armar uma loja em cima de uma cadeira com muitas coisas já em ordem: conchas de coquinhas, latas velhas de sardinhas, dois fundos de copos, e um grande ramo de loiros, quando eu chego e digo: Francisca, deixa-me brincar contigo. Se quiseres vai buscar pão... Corri a casa: mãe, dê-me um pedacinho de pão para ir brincar com a filha da vizinha Antónia. Pão a estas horas, moça? O que tu precisas é uma boa data de açoites. Volto à Francisca: a mãe não me dá pão, mas tu deixas-me brincar, deixas? Mas ela, muito má, responde: não, não e não; se quiseres traz pão. E a mim deu-me logo uma grande raiva; emborco a cadeira com toda a loja e atiro o ramo de loiros para a lama da regueira. Então a moça atira-se a mim e prega-me uma mordedela que me fez ver as estrelas e de que ainda aqui tenho o sinal. Fujo para casa mas daí a nada já ela lá estava com a sua mãe a queixar-se à minha de mim. Tiveram as duas uma assanhada guerreia de língua, mas quando tudo serenou apanhei uma sova de sapato de que me hei-de lembrar toda a minha vida... O que estas historietas me entretinham!» In Manuel Teixeira-Gomes, Maria Adelaide, 1938, Romances Portugueses, Obras Primas do século XX, Coordenação de Davis Mourão-Ferreira, Círculo de Leitores, Cortesia da Livraria Bertrand, 1986.

Cortesia de CLeitores/LBertrand/JDACT