terça-feira, 11 de abril de 2017

Herege. Ayaan Hirsi Ali. «Nem todos aceitarão esse argumento, bem sei. Tudo o que peço aos que não o aceitarem é que defendam o meu direito de enunciá-lo»

jdact e wikipedia

«(…) Aliás, nem sabemos seus nomes. Acalentamos a ilusão de que, por alguma razão, os nossos inimigos mais mortais não são influenciados pela ideologia que eles professam às claras. E depositamos as nossas esperanças numa maioria que evidentemente carece de uma liderança fidedigna e, na verdade, dá sinais de ser mais susceptível aos argumentos dos fanáticos do que aos dos dissidentes.

Cinco Emendas
Nem todos aceitarão esse argumento, bem sei. Tudo o que peço aos que não o aceitarem é que defendam o meu direito de enunciá-lo. Mas, para aqueles que aceitam a proposição de que o extremismo islâmico tem raízes no islão, a questão central é: o que precisa acontecer para derrotarmos os extremistas de uma vez por todas? Ferramentas económicas, políticas, judiciais e militares já foram propostas, e algumas delas, empregadas. Mas acredito que elas serão pouco eficazes a menos que o próprio islão seja reformado. Uma reforma desse tipo já foi proposta repetidamente, por activistas muçulmanos como Muhammad Taha e académicos ocidentais como Bernard Lewis, no mínimo desde a queda do Império Otomano e a subsequente abolição do califado. Nesse sentido, esta não é uma obra original. O que ela tem de original é que eu especifico exactamente o que precisa ser reformado.
Identifiquei cinco preceitos centrais da fé que a tornam resistente à mudança histórica e à adaptação. Somente quando esses cinco aspectos forem reconhecidos como inerentemente nocivos e quando eles forem repudiados e invalidados alcançaremos uma verdadeira reforma muçulmana. Os cinco princípios a serem reformados são: 1. A posição de Maomé como semidivino e infalível, juntamente com a interpretação literal do Alcorão, em especial as partes que foram reveladas em Medina; 2. O investimento numa vida após a morte em detrimento da vida antes da morte; 3. A sharia, o conjunto de leis derivadas do Alcorão, o hadith e o resto da jurisprudência islâmica; 4. A prática de dar a indivíduos o poder de aplicar a lei islâmica ordenando o certo e proibindo o errado; 5. O imperativo de fazer a jihad, ou guerra santa.
Todos esses preceitos devem ser reformados ou descartados. Reconheço que a minha argumentação perturbará muitos muçulmanos. Alguns fatalmente dirão que se ofenderam com as emendas que proponho. Outros, sem dúvida, alegarão que não tenho qualificações para discutir essas questões complexas da tradição teológica e legal. E temo, imensamente, que ela venha a aumentar em alguns muçulmanos a vontade de me silenciar. Mas este não é um livro de teologia. Está mais na linha de uma intervenção pública no debate acerca do futuro do islão. O maior obstáculo à mudança no mundo muçulmano é justamente a supressão do tipo de pensamento crítico que tento enunciar aqui. Mesmo que este livro não logre nenhum outro resultado, eu o considerarei um sucesso se ele ao menos desencadear uma discussão séria sobre essas questões entre os próprios muçulmanos». In Ayaan Hirsi Ali, Herege, tradução de Laura Motta e Jussara Simões, Editora Schwarcz, Companhia das Letras, 2015, ISBN 978-854-380-373-9.

Cortesia de ESchwarcz/CLetras/JDACT