quinta-feira, 27 de abril de 2017

Conheces Sancho? Maria Helena Ventura. «Sempre que Alvar partia, era em Sancho que pensava; de cada vez que me possuía, era Sancho que eu desejava»

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«(…) Andaria pelos vinte anos, de semblante fechado como se fosse cativo de um mundo subterrâneo. Mas quando os nossos olhos se cruzaram, foi como se um sol intenso rasgasse o negro véu que tapava a minha juventude. Senti logo por ele a mais serena explosão de afecto. Entendo, seria amor... mas para o sentirdes, nada vos ligaria a Alvar Pérez Castro, a não ser o contrato de casamento. Eu não diria melhor, padre Pelayo... habituava-me a um senhor que me impuseram, por quem chegara a sentir repugnância logo que me tomava. O clérigo ajeita o corpo ao banco, incomodado com o pormenor. Adiante, senhora... e depois?
Depois conversava com Sancho durante meia hora, ríamo-nos de coisas insignificantes, discutíamos o sentido da vida, os valores mais importantes. Coincidiam, quereis dizer? Dei comigo a pensar nos desencontros da vida, ou nos encontros tardios. Cada um para seu lado e no entanto compatíveis. Descansai um pouco, senhora, interrompe o clérigo de bochechas coradas, de novo perturbado com o rumo da conversa. Ainda não, padre Pelayo. Sempre que Alvar partia, era em Sancho que pensava; de cada vez que me possuía, era Sancho que eu desejava. Calai-vos um pouco, senhora dona Mencia, precisais de descansar. Rodrigo Gonçalves Girão, meu cunhado e privado de meu tio, era um grande aliado, ele e meu pai, que me trazia notícias da fronteira.
Mas vosso irmão Diego, que agora serve el-rei Afonso, não se hostilizou com Fernando pela protecção que ele dava a esse desconcerto? Que desconcerto, Pelayo? Consegue soerguer-se, movida pela indignação E cristão implodir um sentimento puro e recíproco, como se fosse o maior pecado, e ninguém condena a entrega de uma menina, mal desabrocha para a idade núbil, a um varão senil e libidinoso sem ouvir a vontade dela? Não foi isso que eu quis dizer, senhora... Meu irmão revoltou-se contra nosso tio por ele lhe quitar Rioja…, de minha correspondência inofensiva com Sancho, nunca chegou a saber. Depois ficastes viúva... Antes disso as searas verdejaram e amadureceram muitas estações, os pomares tomaram cor e deram fruto. Mas nunca esquecestes o rei de Portugal... Não, sempre pensei em Sancho com ternura, como ele pensava em mim. Faz um intervalo para encher o peito de ar e retoma com dificuldade dona Beatriz morreu antes da sogra, já Sancho mergulhava no Algarve. Ouvi dizer que era valente, na guerra... Já ninguém fala dos feitos, mas foi por sua vontade que alargaram metade do território, enquanto mostrava ser um digno cruzado das campanhas da Ibéria, afastava-se das violentas intrigas que dilaceravam o reino. Não tinha vida serena, vosso esposo.
Não…, procurava apaziguar descontentamentos antigos, fazia acordos instáveis com o bispo do Porto e o arcebispo de Braga, lidava com os excessos praticados em seu nome. Meu tio acreditava que eu lhe traria a paz de que tanto carecia e que ele me daria a estabilidade que até ali me faltara. E por que ninguém soube do vosso casamento, senhora? Só não soube dona Berenguela, a quem faltava saúde mas sobrava determinação: mal ouvia rumores do nosso entendimento, tratava de aconselhar Sancho a esquecer-me. E já lhe procurava esposa em França, com ajuda da irmã, dona Branca. Respira de novo com dificuldade. Tivemos a bênção de outra escolha da rainha-mãe de França para segunda esposa de meu tio, dona Joana d’Aumalle. Sabendo do temperamento da sogra, que procurou dominá-la mal ela chegava ao paço, tudo fez para a contrariar, apoiando a minha união com Sancho.
Mas aonde param as escrituras do enlace, era a isso que eu me referia... Os documentos..., até aqui em Palencia, cidade que meu pai ajudou a fundar, sofreram perseguição e vós sabeis..., levaram o mesmo caminho dos outros registos da cúria de Sancho. Inclina agora o rosto na direcção do padre, com a ponta do queixo a roçar o ombro esquerdo. É por isso que vos peço tanto cuidado com aquelas escrituras... Podeis descansar, senhora, já mandei chamar o destinatário, conforme me pedistes, mas disseram-me que andava por Aragão, onde teria casado...
Gostava tanto de vê-lo..., seria como ver Sancho, de novo. Ao menos fostes feliz com o vosso rei? Sancho era diferente de todos os varões que eu conhecera. Tinha uns olhos meigos, tristes como os de um orfão... Que o era, dona Mencia. Não..., digo de um órfão de família inteira. Hoje, com este último sopro de vida, posso dizer que fomos ditosos durante o tempo que nos foi concedido. E o que mandais que se faça, senhora?» In Maria Helena Ventura, Conheces Sancho? Edições Saída de Emergência, 2016, ISBN 978-989-637-951-3.

Cortesia de ESdeEmergência/JDACT