segunda-feira, 3 de abril de 2017

Até que o Amor me Mate. Maria Lopo Carvalho. «…de novo ao mundo, logo me fizeram estrelas infelizes obrigado; por força de estrela ou de costume…»

jdact

As Mulheres de Camões. Violante de Andrade. 1543
«(…) Assobiava às janelas, fugia pelos mercados, quedava-se noite dentro a versejar, perdia-se em rimas, pasmava no cais a ver partir a carreira da Índia, a ver chegar a carreira do Reino. Onde estás tu, Luís Vaz? Escapava-se para as tabernas a ouvir histórias de marinheiros vindos do Oriente. Cismava que ainda havia de iá ir...
Vem para casa, Luís Vaz. Dei uma sova ao Dinis, quebrei o braço ao Fernão, roubei um beijo a Leonor. Volta, Luís Vaz. Ganhei amor ao rapaz. Depois, quis Deus que Simão entrasse ao serviço dos Armazéns da Casa da Guiné e Índia e logo para lá se embarcasse, a capitanear a nau Conceição, e que por lá se perdesse. Vi-me só. Só e com o filho de Ana Macedo para criar. A revolta veio engrossar o amor que já lhe tinha. Ana: graça e misericórdia ou somente agonia? Havia o destino de me fazer jus ao nome. Ana Macedo era mulher nobre de Santarém, e não plebeia, como eu. Simão Vaz de Camões, meu marido, nasceu em Coimbra, de família galega sem grandes pergaminhos. Foi-lhe concedido o título de cavaleiro-fidalgo por recompensa de serviços militares e administrativos, nobreza de segunda ordem. Mas o que nele sempre me encantou foi a ousadia, o espírito intrépido, a alma forte e apaixonada. Voava como um pássaro. Sempre me foi fiel. Diziam que a alcunha Camões vinha do pássaro camão, que morrera de casta paixão vendo o pecado a esvoaçar-lhe por defronte. Precisava Simão de uma ama forte e robusta para amamentar o filho. A mãe finara-se no dia em que o dera à luz. Eu acorri ao chamado.
Luís Vaz nasceu mal se apagou o seu parente Vasco da Gama. Veio ao mundo em casa de seus pais, à Mouraria, e foi baptizado na Igreja de São Sebastião pelo pároco, Manuel Correia, homem de poucas falas e rara simpatia. Ainda trago acesa a lembrança das trovas do sapateiro de Trancoso, o Bandarra. Profetizava ele, lendo as estreias e colhendo indícios na Sagrada Escritura, que o reino do Encoberto estava para chegar. Era de ver que semelhante prenúncio ia entregar ao Santo Ofício (maldito) o pobre sapateiro; e fora coisa triste vê-lo desfilar no fúnebre cortejo.
Fúnebre cortejo em vida e na morte é também o que adivinho para Luís Vaz: nem fortuna terrena nem grandeza eterna, pois que nasceu sob uma má estrela, no desditoso ano de 1525, com o anúncio do fim do mundo. Lembro-me bem, aguardava-se então, a cada apavorado amanhecer, o segundo dilúvio anunciado. Profecias, dilúvios, conjugações do Sol e da Lua e o mundo que não acabava. Mas se o mundo não acabava, tudo acabava no mundo. A ventura dava lugar à desventura, a meninice à última idade, o amor à solidão e à saudade, tudo no mundo mudava e, porém, nada mudava no mundo.

…de novo ao mundo, logo me fizeram
estrelas infelizes obrigado;
por força de estrela ou de costume
fujo do melhor sempre e o pior sigo».
In Maria João Lopo de Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN -978-989-741-488-6.

Cortesia de Odo Livro/JDACT