terça-feira, 25 de abril de 2017

As Obras do Diabinho da Mão Furada. António José Silva. «… destes, por ser singular o mentir pelo seu prazer, podemos nós aprender a mentir e a enganar»

jdact e wikipedia

«(…) O castigo que se lhes dá é dobrarem-se-lhes os tormentos que padecem. E eu não sei que antipatia tem a fortuna com a poesia, que tão pouco favorece os poetas apesar de ser tão aplaudida por eles, e que simpatia tem a poesia com a miséria e a pobreza, que não houve professor seu, por mais talentoso que fosse, que não acabasse na maior miséria. E por isso, com muita razão, está naquele canto o pai de Ovídio a açoitá-lo, por este fazer versos, mas enquanto leva com o chicote, promete, em verso, emendar-se, porque é tal a doença da poesia, que, por mais que procurem os génios que a professam deixá-la, não se podem livrar dela.

Não tinha o Diabinho acabado de dizer as razões referidas, quando o Soldado viu muitos homens montados em mulas, vestes longas, com anéis de bispos e luvas fechadas nas mãos, vindo a fugir de uma grande multidão de gente que os seguia, dizendo-lhes: esperai, infames verdugos da morte, que vós pagareis aqui o que nos destes a beber com tantas sangrias e beberagens! E o pior foi que, quando estávamos a morrer, vocês diziam-nos que estávamos sãos, e por isso descuidávamos do arrependimento da nossa salvação. E, por nos chegar a morte de repente, não podemos tratar dele. São vocês, malditos, os responsáveis por termo vindo para aqui com este epigrama: e assim com razão pagais, com pena e rigor tão forte, serem na vida e na morte gadanhas universais.

Seguiam também este grupo, mais dois tumultos de gente, uns atirando-lhe com redomas, almofarizes e espátulas, e outros com violas e jogos de tábuas. Os primeiros diziam-lhes: falsos Galenos, vós haveis de pagar por terem sido o instrumento da nossa perdição com a porcaria das vossas receitas! Já os segundos diziam que eles tinham a culpa das inumeráveis execuções resultantes das suas sangrias. Não ignorou o soldado Peralta que os cavaleiros nas mulas eram médicos e os das redomas e guitarrinhas barbeiros e boticários, e por isso não perguntou nada ao Diabinho, mantendo-se a ver no que dava aquela revolta. Quando apanharam todos aos doutores, deitaram-nos das mulas abaixo e arrastaram-nos por uns metros; depois deram aos boticários asquerosas beberagens e aos barbeiros fizeram muitas sangrias com lancetas de fogo ardentíssimo.

Ocupado estava o Soldado a ver estas coisas, quando apareceu outra grande multidão de gente, uns com sovelas e outros com tesouras nas mãos, dando uns nos outros soveladas e tesouradas, fazendo uma barafunda de todos os diabos; e a causa da disputa era sobre quem tinham sido na vida mais mentirosos. E, como os das sovelas eram sapateiros e os das tesouras alfaiates, não se atreveram os demónios que os acompanhavam a resolver a questão, limitando-se a dizer-lhes este quarteto: destes, por ser singular o mentir pelo seu prazer, podemos nós aprender a mentir e a enganar.

E logo atrás desses demónios viu o Soldado que estavam outros maiores e traz desses ainda outros tantos, que traziam pessoas de rasto e lançavam-nas num lago de água suja, fedorenta e turva, para que bebessem nele a mesma porcaria que tinham posto nos vinhos que venderam por serem taberneiros. Os taberneiros gritavam para que não os lançassem dizendo que o vinho não merecia tão grande castigo pois ia assim baptizar-se e fazer-se cristão; e os demónios em paga de uma tão boa vontade, como eram missionários baptizantes de Baco, respondiam-lhes: bebei nessa eternidade, velhacos de infame ser, dessa água mais quantidade que a que fizestes beber aos homens contra a vontade!» In António José Silva (1705-1739), As Obras do Diabinho da Mão Furada, 1861, A Primeira Novela Sobrenatural Portuguesa, Luso Livros, Nova forma de Ler, ISBN 978-989-817-496-3.

Cortesia de LLivros/JDACT