terça-feira, 11 de abril de 2017

As Cidades Invisíveis. Italo Calvino. «Os embaixadores eram persas arménios sírios coptas turcomanos; o imperador é o que é estrangeiro para cada um dos seus súbditos e só através de olhos e ouvidos estrangeiros…»

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As cidades subtis. 1
«(…) Enviados para inspeccionar as remotas províncias, os emissários e os cobradores de impostos do Grão Kan regressavam pontualmente ao palácio real de Kemenfu e aos jardins de magnólias a cuja sombra passeava Kublai ouvindo os seus longos relatórios. Os embaixadores eram persas arménios sírios coptas turcomanos; o imperador é o que é estrangeiro para cada um dos seus súbditos e só através de olhos e ouvidos estrangeiros o império podia manifestar a sua existência a Kublai. Em línguas incompreensíveis ao Kan os emissários davam notícias entendidas em línguas para eles incompreensíveis: desta opaca espessura sonora emergiam os valores cobrados pelo fisco imperial, os nomes e os patronímicos dos funcionários depostos e decapitados, as dimensões dos canais de irrigação que os magros rios nutriam em tempos de seca. Mas quando era o jovem veneziano a fazer o seu relatório, estabelecia-se uma comunicação diferente entre ele e o imperador. Recém-chegado e ignorando completamente as línguas do Levante, Marco Polo não podia exprimir-se de outro modo que não fosse com gestos, saltos, gritos de espanto e de horror, latidos ou berros de animais, ou com objectos que ia extraindo dos seus alforjes: penas de avestruz, zarabatanas, quartzos, e dispondo à sua frente como peças de xadrez. De retorno das missões a que o enviava Kublai, o engenhoso estrangeiro improvisava pantominas que o soberano tinha de interpretar: uma cidade era designada pelo salto de um peixe que escapava ao bico do albatroz para cair numa rede, outra cidade por um homem nu que atravessava o fogo sem se queimar, uma terceira por uma caveira que apertava entre os dentes verdes de bolor uma pérola cândida e redonda. O Grão Kan decifrava os sinais, mas permanecia incerto o nexo entre estes e os lugares visitados: nunca sabia se Marco pretendia representar uma aventura que lhe acontecera numa viagem, uma façanha do fundador da cidade, a profecia de um astrólogo, um enigma ou uma charada para indicar um nome. Porém, evidente ou obscuro que fosse, tudo o que Marco mostrava tinha o poder dos símbolos, que depois de vistos não se podem esquecer nem confundir. Na mente do Kan o império reflectia-se num deserto de lados caducos e intercambiáveis como grãos de areia de que emergiam para cada cidade ou província as figuras evocadas pelos logogrifos do veneziano.
No dia em que conhecer todos os símbolos, perguntou Marco, conseguirei possuir o meu império, finalmente? E o veneziano: sire, não acredites nisso; nesse dia serás tu mesmo símbolo entre os símbolos». In Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, 1990, Editorial Teorema, Lisboa, 2003, Leya, Publicações don Quixote, 2015, ISBN 978-972-206-037-0.

Cortesia de ETeorema/JDACT