domingo, 30 de abril de 2017

Abadia dos Cem Pecados. Marcello Simoni. «Contudo, a insolência deve ser punida, retomou o monarca. Fazei uma excepção, por mim, insistiu o príncipe»

jdact

A pedra do exílio
Planalto de Crécy. 26 de Agosto de 1346
«(…) Maynard baixou o olhar, mais por respeito pelos companheiros mortos do que por receio do monarca. É verdade que subvalorizámos os arqueiros, admitiu, de dentes cerrados. Mas da próxima vez... Não haverá próxima vez, silenciou-o Filipe VI. Não no futuro imediato, pelo menos.
O cavaleiro foi invadido pelo espanto. Não ides ficar à espera de que Eduardo III e o Príncipe Negro marchem sobre Paris! A sua meta não é Paris, mas Calais. E ireis deixar que a tomem de assalto? Não temos escolha.
Maynard suspirou, profundamente desiludido. Não era uma crítica à estratégia a adoptar, mas à facilidade com que fora silenciado. Se é como dizeis, majestade, isso significa que em Crécy perdemos algo mais importante do que uma batalha. Rocheblanche!, apostrofou-o o rei. O senhor vosso pai nunca se permitiria dirigir-se a nós com tal insolência. O meu pai era um animal, pensou o cavaleiro. Antes de responder, detectou um olhar rápido do príncipe Karel a um candelabro coberto de ferrugem, atrás do qual entreviu uma figura negra que se movia na sombra. Um segundo depois, a figura deslizou na escuridão.
Mavnard pensou fazê-lo notar ao monarca, mas mordeu a língua. Já vira e falara o suficiente.
Peço licença, disse, portanto, fingindo-se consternado. Não pretendia faltar ao respeito, apenas expressar a minha opinião. Não peço opiniões. Filipe VI estava longe de querer acalmar-se. Não penseis que irei cobrar barato, senhor. Foi então que Karel do Luxemburgo se intrometeu na conversa. Majestade, disse, em tom conciliador, talvez o vosso cavaleiro apenas precise de descanso. Deteve-se à sua frente com ar melífluo. Reparastes na sua palidez? Mais do que o seu carácter, a ferida na perna deve ter-lhe comprometido o entendimento.
Contudo, a insolência deve ser punida, retomou o monarca. Fazei uma excepção, por mim, insistiu o príncipe. Este homem trouxe notícias de meu pai. Infelizmente, notícias tristes, mas que, porém, me tornam seu devedor. Depois de um instante de silêncio, o rei concordou. Rocheblanche, agradecei ao nobre Karel pela sua magnanimidade. E, impaciente, acrescentou: dispensamos-vos com a ordem de regressardes às vossas terras logo que estiverdes recomposto. Nunca mais ouseis faltar ao respeito ao vosso soberano. Maynard apoiou-se no cajado e desenhou uma reverência. Erguendo os olhos, avistou o riso malicioso de Karel do Luxemburgo e notou que este o observava com a desconfiança ávida de um inquisidor. Percebeu então que não conseguira enganá-lo. E que fizera um grande inimigo.
Chegar à saída da igreja não foi empresa fácil. Não pela dificuldade em andar, mas devido ao peso que Maynard começava a sentir dentro de si. Era verdade que Karel do Luxemburgo o defendera para o prender numa relação de cumplicidade. Uma cumplicidade entre inimigos. E, embora ignorasse em que medida estava envolvido na morte de Jang de Blannen, sentia que devia proteger-se daquele homem. Desconfiava de que ele pressentira a sua mentira e de que, de uma maneira ou de outra, se esforçaria por descobrir o que lhe escondia.
Parou a meio da nave central, como que para pedir conselho ao crucifixo que se destacava no altar. Viu-o reluzir sob uma janela destituída de vitrais, esculpido na madeira. O Cristo suspenso pelos pregos era magro e nodoso, com dois grandes olhos talhados em forma de gota. O cavaleiro entreabriu os lábios para lhe dirigir uma prece, mas foi de tal modo atraído que já não conseguiu formular um único pensamento. Dor corporal e dor espiritual». In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.

Cortesia de CdoAutor/JDACT