sexta-feira, 14 de abril de 2017

A Princesa Guerreira. Barbara Erskine. «Quem teria convidado, já tão tarde, para um copo de vinho? Não tivera mais nenhum a relação depois de Will. Não se sentia atraída por ninguém, muito menos por algum dos seus colegas do colégio»

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«(…) Quando Dan desapareceu na direcção do bar, algures nos confins do átrio, um outro colega apareceu ao seu lado. Olá, Jess! Will Matthews fez uma careta ao ouvir o barulho. Vamos ter problemas com os vizinhos. Apontou para as portas do átrio com uma garrafa de cerveja loura meio vazia. Jess e aquele homem alto, louro e atraente tinham sido tema de mexericos durante a maior parte dos três anos em que ela dera a cadeira de Literatura Inglesa no Sixth Form College de North Woodley, no sul de Londres. A maior parte desses anos, mas não agora. Will era professor efectivo no departamento de História. Também treinava as equipas de basquetebol, squash e atletismo. De camisa azul, colarinho aberto, calças de ganga e cinto de rebite em couro amplamente trabalhado, ele atraía, reparou, vários pares de olhos lúbricos entre as suas alunas adolescentes.
Jess e Will tinham sido um casal perfeito em muitos sentidos, mas sempre houvera algo entre os dois que não corria exactamente bem. A ambição de Will, talvez; a sua certeza, cortesia engendrada por uma mãe extremosa e duas irmãs mais novas, de que era irresistível; a tendência para presumir que o seu trabalho, a sua carreira, a sua visão do mundo, tinham precedência sobre os dela; o paternalismo, talvez involuntário, com que via uma carreira no ensino da Literatura e o incontestável talento de Jess como aguarelista. Tudo isto lhe causara ressentimentos. Quando Will a convidara para ir viver com ele, ela descobrira que, acima de todas as arrelias, e por muito que gostassem um do outro, não suportava perder a sua independência. E nisto começara a descida escorregadia até à ruptura. Não existia outra mulher, pelo menos Jess nunca ouvira dizer que houvesse alguém. Fora simplesmente a recusa de Will em aceitar uma solução de compromisso e reconhecer a autonomia dela que se metera, por fim, entre os dois e destruíra a relação em duas ou três breves semanas, deixando-a zangada e confusa e, a Will, infeliz e amargo. Depois desta azeda separação, tinham-se evitado em absoluto, o que era difícil no interior do colégio, mas ainda assim perfeitamente exequível, se ambos se empenhassem. Coisa que tinham feito. Até àquele momento. Vá lá, Jess. Uma dança, pelos bons velhos tempos? Sorriu-lhe, insinuante. Jess franziu o sobrolho.
Não me parece, Will. Oh, vá lá. Para mostrar que não há rancores? Fim de trimestre. Bons resultados, pelo amor de Deus! Nem precisas de voltar a ver-me! Ela arqueou uma sobrancelha. Porquê? Vais-te embora? Ele deu uma gargalhada. Isso querias tu! Não. Mas, no próximo trimestre, prometo evitar-te como à própria peste. Jess resistiu ao impulso de devolver o sorriso. Aquele sorriso sempre fora a sua perdição. Era demasiado charmoso; demasiado persuasivo; de longe, demasiado atraente. Tinha de ser forte. Vamos continuar a evitar-nos um ao outro, certo, Will? Dá-me licença. Tenho de ir cumprimentar Ash. Ocultando o desejo que sentia, a tentação ainda tão viva, dirigiu-lhe um encolher de ombros tenso e apologético e virou-lhe as costas. Depois, inspirou a última golfada de ar fresco e mergulhou na massa palpitante de corpos que dançavam, deixando-o parado a olhar para ela.
Assim que a viu, Ashley afastou-se da sua mesa de mistura, fez sinal a Max para que o irmão mais novo, que estava no palco ao lado dele, o substituísse e saltou para o chão. Venha dançar, Jess! Ash aproximou-se com um sorriso nos lábios, o rosto atraente coberto de gotas de suor, a camisa de cores vivas ensopada, e as suas mãos pegaram nas mãos dela, levantando-lhe os pulsos e largando-a em seguida, pronta e em posição para começar a dançar, enquanto ele rodopiava, meneando as ancas à sua frente. Ela não devia rir-se. Devia repreendê-lo por tratá-la por Jess, mas para quê? As aulas tinham acabado em todos os sentidos. A época de exames terminara. A noite estava quente e convidativa, e todos aqueles jovens se divertiam. Talvez pudesse mesmo soltar o cabelo. Dançou com Ashley, dançou com vários outros alunos e dançou com Brian Barker, o director do colégio. Por fim, já muito descontraída, dançou com Will, parecera-lhe um esforço demasiado grande rejeitá-lo. Bebeu o ponche de frutas de Dan. Depois, mais um pouco, com um shot extrapicante reservado ao pessoal! Tornou a dançar com Dan e, em seguida, com Ashley, uma última vez. Já era de madrugada quando a festa finalmente acabou, após a segunda visita da polícia.
Ashley tinha ficado à espera dela à saída do átrio. Depois disso, Jess não se lembrava de nada. Preparando com mãos trémulas uma chávena de café, bebeu-o em pequenos goles, devagar. Quem teria convidado, já tão tarde, para um copo de vinho? Não tivera mais nenhum a relação depois de Will. Não se sentia atraída por ninguém, muito menos por algum dos seus colegas do colégio. Não agora. Não era o tipo de pessoa que levava um encontro casual para casa e acabava na cama com ele. E ninguém, absolutamente ninguém que ela conhecia, a teria ferido e deixado naquele estado. Puxando pela cabeça enquanto beberricava o resto do café, lembrou-se de ter visto Ash saltar do capô de um carro para o tejadilho e pôr-se a declamar, de punhos erguidos na direcção das estrelas. Shakespeare. Citara Shakespeare, esse rapaz que ela protegera e estimulara com tanto cuidado na sua sala de aula, que dirigia a sua própria trupe de actores de rua e que acalentava o sonho secreto de entrar na Academia Real de Artes Dramáticas (RADA), o sonho de ser actor num palco do West End, de desafiar as suas origens, o pai ausente, os irmãos drogados, assim confirmando a fé determinada e silenciosa que a mãe tinha nele. Ash gritara o discurso para o mundo ouvir e, no fim, rindo-se, saltara para o chão e fizera-lhe uma vénia cortês». In Barbara Erskine, A Princesa Guerreira, 2008, tradução de Catarina Almeida, Grupo Planeta, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2009/2010, ISBN 978-989-657-113-9.

Cortesia de PManuscrito/JDACT