terça-feira, 4 de abril de 2017

A Flor e a Foice Rentes de Carvalho. «De Pedro, o Cru, já antes citado, alargava a biografia horrorosa: (...) tinha a paixão da justiça: era nele uma mania, como no seu avô fora a guerra: não prescindia de julgar todos os delitos»

jdact

«(…) Muito obrigado. Não vale a pena. Era só para ver uma coisa..., e em pontas de pés saímos dali direitos a um alfarrabista que sim senhor, meus senhores, tinha a História de Portugal de Oliveira Martins, em dois volumes, décima primeira edição, 1927.
Embora descobríssemos logo a seguir que a História se estudava à luz de concepções que pouco tinham a ver com as de Oliveira Martins, o qual, para nós, cometera o pecado mortal de ignorar Marx, seu contemporâneo. Mesmo assim, que inesquecível leitura! Aquele retrato de Portugal parecia-nos mais conforme do que as hagiografias que nos tinham obrigado a aceitar e, com o sentimento de que fazíamos obra revolucionária, copiávamos frases que, secretamente, distribuíamos aos mais novos.
Nos séculos XII e XIII Portugal é um certo território, propriedade dum certo príncipe: donde vem?, quem é?, pouco importa. O conde Henrique era francês. Assim, a época da primeira dinastia desmente por todos os lados, e de todas as formas, a ideia duma raça, possuindo, dum modo mais ou menos definido, a consciência da sua existência colectiva. Quem era Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal? Era audaz, temerário até, pessoalmente bravo, qualidades nem tão comuns no tempo, como a muitos acaso pareça (...) mas era seco, astuto, friamente ambicioso, sem quimeras nem ilusões. Submisso e humilde quando se achava vencido, subscrevia todas as condições, aceitava todas as durezas; para logo mentir a todas as promessas, rasgar todos os tratados, com uma franqueza ingénua, uma simplicidade natural, que chegavam a espantar a própria Idade Média.
De Pedro, o Cru, já antes citado, alargava a biografia horrorosa: (...) tinha a paixão da justiça: era nele uma mania, como no seu avô fora a guerra: não prescindia de julgar todos os delitos. Os criminosos vinham à corte desde os remotos confins do reino. Quando algum chegava, manietado, e o rei comia, levantava-se pressuroso da mesa, e trocava a vianda pela tortura. Prazia-se em ajudar e dirigir os algozes; indicava os expedientes e processos para obter a confissão dos réus. Nunca abandonava o açoute: enrolado à cinta em viagem, tomava dele, e por suas mãos castigava os facínoras que no caminho lhe traziam.
Valendo-se duma citação de Alexandre Herculano, Oliveira Martins despachava assim o retrato de três reis da primeira dinastia: o rei Dinis foi um avaro, Afonso IV um homem de juízo, Pedro I um doido com intervalos lúcidos de justiça e economia. Dali passava aos Descobrimentos. Ora nós, jovens, não tínhamos sido insensíveis ao trovejar da epopeia de Camões e sem excepção, sabíamos de cor os primeiros versos de Os Lusíadas. Além disso, o hino nacional, que cantávamos pelo menos todos os sábados de manhã, era igualmente belicoso. Pense cada qual o que quiser, não deixa de ser realidade que, sobre esse período particular da História, nos encontrávamos razoavelmente endoutrinados. As façanhas dos nossos marinheiros e soldados a caminho do Oriente eram infinitamente mais excitantes do que as lamechices de Texas Jack, Jesse James e os restantes fora-da-lei do faroeste.
Ora o historiador, com um simples parágrafo, limpou-nos a cabeça das teias do heroísmo e, pelo menos no que me diz respeito, vacinou-me contra as versões oficiais passadas, presentes e futuras dos acontecimentos históricos: navegadores (...) a maneira como nos aventurámos ao mar retrata ainda a nossa fisionomia colectiva: fomos prudente e pacientemente ao longo das costas africanas, ou de ilha em ilha, no oceano, caminhando passo à passo. avançando sempre, tenazes, mas jamais temerários». In J. Rentes de Carvalho, Portugal, A Flor e a Foice, Quetzal Editores, Lisboa, 2014/2015, ISBN 978-989-722-146-0.

Cortesia de QuetzalE/JDACT