domingo, 9 de abril de 2017

A Cruz de Esmeraldas. Cristina Torrão. «Agora, fora estas excursões semanais, só estava autorizada a ir às sextas-feiras à mesquita, ou, de vez em quando, ao casebre do pobre ancião, para lhe levar comida»

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Lusbuna. Verão de 1142
«(…) Aischa, que já completara dezassete anos, dirigia-se ao hammã, os banhos públicos, que às quartas-feiras estavam reservados às mulheres. Acompanhavam-na as suas três irmãs solteiras, duas das esposas de Malik Ibn Danaf e algumas escravas. Esta era uma das poucas ocasiões em que as mulheres saíam de casa e Aischa alegrava-se com o facto de seu pai lhes permitir a ida ao hammã, apesar de possuírem tinas de banho em casa. As termas abobadas situadas na zona ribeirinha intramuros haviam dado o nome ao bairro onde ela vivia: al-hammã. Assim se chamavam também uma das Portas orientais de Lusbuna, que se abria num recanto que a muralha formava, e ainda o arrabalde extramuros, aninhado nas rochas que serviam de alicerce às muralhas e cuja população se dedicava à faina marítima. Aischa, achava contudo, que era uma pena as termas se situarem tão perto de sua casa. Lembrava-se com saudade dos tempos em que, com as outras crianças, percorria as ruas de Lusbuna, a fim de procurarem o velho Abdalah, que lhes contava histórias da altura do califado. Agora, fora estas excursões semanais, só estava autorizada a ir às sextas-feiras à mesquita, ou, de vez em quando, ao casebre do pobre ancião, para lhe levar comida. Às quartas-feiras, não era só o pequeno passeio que lhe agradava. Nos banhos, tinha a oportunidade de conversar com amigas, além de gozar os prazeres que as águas termais lhe proporcionavam. Prazeres aos quais a sua mãe não dava grande valor, pois raramente lá ia. A moça andava muito preocupada com Zubaida, que emagrecia a olhos vistos, ficando vulnerável a doenças. Parecia ter perdido a vontade de viver e a filha não sabia o que fazer para lha devolver.
Zubaida nunca fora capaz de travar amizade com as outras duas esposas do mercador mouro, no que aliás não era a única culpada. Tarube e Cassima pareciam suspeitar da antiga cristã, mas talvez apenas por invejarem uma mulher dez anos mais nova do que elas. A própria Aischa tinha dificuldades em se dar com parte da família. Com quatro das suas seis irmãs entendia-se mal. Agora, já três delas haviam casado e deixado a casa paterna. Naquela manhã soalheira, mas fresca, de Março, Aischa e Jamila, a sua irmã preferida, não paravam de cochichar e de dar risadas, o que provocava olhares severos das duas mulheres mais velhas. Mas Aischa não conseguia controlar a sua excitação: iria nesse serão receber a visita do seu noivo Amir. Amir pertencera igualmente ao grupo de crianças que se reuniam à volta de Abdalah, mas, desde que Aischa se tornara mulher e se vira obrigada a levar uma vida recatada, nunca mais pousara os olhos no rapaz. Mesmo na mesquita não tinha oportunidade de lhe lançar um olhar que fosse, pois uma parede separava as mulheres dos homens.
Aischa era invejada. O pai de Amir era um ulama, um sábio do Islão, que ensinava o árabe e o Corão aos rapazes e que fazia parte da assembleia de notáveis, à qual o alcaide al-Attar presidia. Vivia na al-qasbâ, ou alcáçova, como os cristãos lhe chamavam, o bairro adjunto à residência do alcaide, que uma muralha interior separava do resto da cidade. Chegada às termas, Aischa mergulhou nas águas quentes e frias. A sua escrava Flora secou-a delicadamente com uma toalha de algodão e massajou-a com óleos perfumados de rosas bravas. A cristã Flora sentia-se bem na casa do mercador mouro, apesar da sua condição de escrava. Como filha de um servo, um trabalhador da terra, que, como os escravos, não era livre, dava graças a Deus que lhe proporcionara tal destino, sem passar fome e vivendo com mais conforto do que alguma vez imaginara. Por ser meiga e de confiança, fora a ama da pequena Aischa e entre as duas desenvolvera-se uma relação afectiva». In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT