sexta-feira, 24 de março de 2017

O Tesouro do Templo. Eliette Abécassis. «Com o dedo, indicou uma passagem: a mão do Senhor pousou-se em mim; fez-me sair pelo Espírito Santo e depositou-me no meio do vale»

jdact e wikipedia

«(…) Assim falara o meu pai e, por trás da dialéctica daquele sábio, não podia impedir-me de reconhecer o padre Cohen. Dois anos antes, eu descobrira que ele fora um essénio, até que decidira sair das grutas, aquando da fundação do Estado de Israel, para ir viver na cidade, e compreendi por que motivo aquele homem, de uma força e de uma estatura imponentes, conferidas pelo saber, pela coragem e pela fidelidade, tinha o carisma e o porte de um patriarca, com os seus cabelos castanhos, o seu corpo magro mas musculado, os seus olhos negros como dois archotes, num rosto iluminado por um sorriso quase mágico, que exprimia, simultaneamente, a vida do espírito que o inspirava e a serenidade conferida pelo estudo dos textos antigos. Era, sem dúvida, por isso, que meu pai não tinha idade, ou antes, aparentava todas as idades, personificando a memória dos tempos.
És novo, podes combater, insistiu ele. Possuis os conhecimentos e a força necessários para deslindar este enigma. A menos que queiras fazer como o profeta Jonas e fugir à tua missão... São assuntos deles, respondi. Enganas-te. Não são deles, mas, sim, um assunto que te diz respeito. Aquele homem foi sacrificado aqui perto, vestido com os vossos trajos rituais. E, se não agires, fica a saber que a investigação se encaminhará na vossa direcção. Acabará por descobrir-se a vossa existência secreta, e chegar-se-á, talvez mesmo, ao ponto de vos acusarem do crime, para vos obrigarem a sair das grutas, e prender-vos-ão, desta vez para sempre. Por isso mesmo, não se trata de um combate, mas da vossa salvação! Está escrito que devemos afastar-nos dos caminhos do mal. Foi então que meu pai se aproximou do rolo que eu começara a copiar. Decifrador de textos antigos, interessava-se pelas formas individuais das letras, para determinar em que época os textos haviam sido escritos e, apesar de a paleografia não ser propriamente uma ciência exacta, uma vez que nenhum manuscrito pode servir de referência absoluta, conseguia distinguir, nos textos que lia, a evolução das formas das consoantes mais recentes em comparação com as mais tardias. Memorizava tudo o que decifrava, reparava atentamente nas características de cada fragmento que estudava, mas também na qualidade do couro, na sua preparação e, até, no estilo do escriba, na tinta, no vocabulário e nos assuntos redigidos. As suas competências linguísticas permitiam-lhe ler, com igual desenvoltura, o grego e o semítico, analisar as tábuas cuneiformes bem como os bicos das flechas cananéias, com que se gravavam textos em documentos fenícios, púnicos, hebraicos, edomitas, aramaicos, nabateus, palmirenos, tamadeus, safaíticos, samaritanos ou cristo-palestinianos.
Com o dedo, indicou uma passagem: a mão do Senhor pousou-se em mim; fez-me sair pelo Espírito Santo e depositou-me no meio do vale; estava cheio de ossadas. Está escrito, desde o século II, que isto aconteceria no fim dos tempos, comentou. Acompanhei meu pai até à saída da gruta. À nossa frente, um grupo de homens aguardava. Anoitecera e, à luz do luar, podia avistar-se o maciço rochoso escarpado que nos separa do resto do mundo. Ao longe, no horizonte sombrio, recortavam-se os rochedos calcários, que formam a paisagem lunar do mar Morto. Num banco formado por rochas, à saída das nossas grutas, reconheci os membros do Conselho Supremo: Issakar, Pérèc e Yok, os padres Cohamin, Ashbel, Ehi e MoouPim, os Levis, bem como Guéra, Naamâne e Ard, filho de Israel, acompanhados de Levi, o padre que havia sido o meu instrutor, um homem de idade avançada, cabelos sedosos e grisalhos, pele encarquilhada e tisnada pelo sol, lábios finos e porte altivo. Aproximando-se de meu pai, disse: não te esqueças, David Cohen, de que estás dentro do segredo. Meu pai aquiesceu, em silêncio, e, pelas fissuras das rochas, iniciou a árdua descida que leva ao mundo conhecido. No dia seguinte, ao amanhecer, despi as minhas vestes rituais e enverguei os meus antigos fatos de hassídio em que não tocava há dois anos: uma camisa branca e calças pretas. Só depois parti.
Avancei pelo deserto solitário, sob um calor opressivo, com o rosto em brasa e os olhos encandeados pela luminosidade, seguindo, por entre as fissuras das rochas e pelas ravinas, o caminho secreto e perigoso que apenas os essénios conhecem. À minha frente, brilhava o grande lago de sal que se estende a quatrocentos metros abaixo do nível do mar, e onde o calor é tanto que a água se evapora, tornando o mar Morto ainda mais amargo. Chamam-lhe assim em virtude de as suas águas, pouco propícias a qualquer forma de vida, não consentirem peixes, algas ou embarcações e onde raramente se avistam homens». In Eliette Abécassis, O Tesouro do Templo, 2001, tradução de Catarina Lima, Círculo de Leitores, ISBN 972-423-086-4, Editora Livros do Brasil, Colecção Suores Frios, 2003, ISBN 978-972-382-671-5.

Cortesia de CL/ELBrasil/JDACT