terça-feira, 14 de março de 2017

O Segundo Sexo. Simone Beauvoir. «Não se ignoram as dimensões que atinge o ovo do pássaro; na mulher o óvulo mede 0,13 mm de diâmetro, ao passo que no esperma humano encontram-se 60.000 espermatozoides por milímetro cúbico»

Cortesia de wikipedia e jdact

Factos e Mitos. Destino
«(…) Não pretendemos propor aqui uma filosofia da vida; e não queremos tomar apressadamente partido na querela que opõe o finalismo ao mecanicismo. É entretanto digno de nota o facto de que todos os fisiólogos e biólogos empregam uma linguagem mais ou menos finalista, pelo único facto de darem um sentido aos fenómenos vitais; adoptaremos o seu vocabulário. Sem nada decidir quanto à relação entre a vida e a consciência, pode-se afirmar que todo facto vivo indica uma transcendência, que em toda a função se encaixa um projecto: nossas descrições não subentendem nada mais.
Na grande maioria das espécies, os organismos masculinos e femininos cooperam em vista da reprodução. São fundamentalmente definidos pelos gametas que produzem. Em algumas algas e em alguns cogumelos, as células que fusionam para produzir o ovo são idênticas; esses casos de isogamia são significativos pelo facto de manifestarem a equivalência basal dos gametas; de maneira geral estes são diferençados, mas a sua analogia permanece impressionante. Espermatozoides e óvulos resultam de uma evolução de células primitivamente idênticas. O desenvolvimento das células femininas em oócitos difere do dos espermatozoides por fenómenos protoplásmicos, mas os fenómenos nucleares são sensivelmente os mesmos. A ideia expressa em 1903 pelo biólogo Ancel é considerada válida ainda hoje: uma célula progerminadora indiferençada se tornará masculina ou feminina segundo as condições que encontra na glândula genital no momento da sua aparição, condições reguladas pela transformação de certo número de células epiteliais em elementos nutridores, elaboradores de um material especial. Esse parentesco originário exprime-se na estrutura dos dois gametas que, no interior de cada espécie, comportam o mesmo número de cromossomos. No momento da fecundação, os dois núcleos confundem a sua substância e em cada um deles se opera uma redução dos cromossomos, que ficam limitados à metade do seu número primitivo. Essa redução produz-se em ambos de maneira análoga, redundando as duas últimas divisões do óvulo na formação dos glóbulos polares, o que equivale às duas últimas divisões do espermatozoide. Pensa-se hoje que, segundo a espécie, é o gameta masculino ou o feminino que decide da determinação do sexo. Entre os mamíferos é o espermatozoide que possui um cromossomo heterogéneo aos outros e cuja potencialidade é ora masculina, ora feminina. Quanto à transmissão dos caracteres hereditários, ela se efectua segundo as leis estatísticas de Mendel tanto pelo pai como pela mãe. O que cumpre notar é que nenhum dos gametas tem privilégio nesse encontro. Ambos sacrificam sua individualidade, absorvendo o ovo a totalidade de sua substância. Há, portanto, dois preconceitos muito comuns que, pelo menos nesse nível biológico fundamental, se evidenciam falsos: o primeiro é o da passividade da fêmea; a faísca viva não se acha encerrada em nenhum dos dois gametas: desprende-se do encontro deles. O núcleo do óvulo é um princípio vital exactamente simétrico ao do espermatozoide. O segundo preconceito contradiz o primeiro, o que não impede que muitas vezes coexistam: o de que a permanência da espécie é assegurada pela fêmea, tendo o princípio masculino uma existência explosiva e fugaz. Na realidade, o embrião perpetua o germe do pai tanto quanto o da mãe e os retransmite juntos aos descendentes, ora sob a forma masculina, ora sob a feminina. É, por assim dizer, um germe andrógino que, de geração em geração, sobrevive aos avatares individuais do soma.
Dito isso, cabe acrescentar que se observam diferenças secundárias das mais interessantes entre o óvulo e o espermatozoide; a singularidade essencial do óvulo consiste em estar carregado de materiais destinados a nutrir e proteger o embrião. Ele acumula reservas à custa das quais o feto construirá os seus tecidos, reservas que não são uma substância viva, e sim uma matéria inerte; disso resulta que apresenta uma forma maciça, esférica ou elipsoidal e é relativamente volumoso. Não se ignoram as dimensões que atinge o ovo do pássaro; na mulher o óvulo mede 0,13 mm de diâmetro, ao passo que no esperma humano encontram-se 60.000 espermatozoides por milímetro cúbico. A massa do espermatozoide é extremamente reduzida; ele possui uma cauda filiforme, uma cabecinha alongada, nenhuma substância estranha o entorpece, todo ele é vida. A sua estrutura o destina à mobilidade; ao passo que o óvulo, em que se acha armazenado o futuro do feto, é um elemento fixo. Encerrado no organismo feminino ou suspenso em um meio exterior, aguarda passivamente a fecundação. É o gameta masculino que o procura. O espermatozoide é sempre uma célula nua; o óvulo, segundo as espécies, é protegido ou não por uma membrana, mas, em todo caso, logo que entra em contato com ele, o espermatozoide empurra-o, fá-lo oscilar e infiltra-se nele. O gameta masculino abandona a cauda, a cabeça incha e num movimento giratório alcança o núcleo. Durante esse tempo, o ovo forma, de imediato, uma membrana, protegendo-se contra os outros espermatozoides. Entre os equinoides, em que a fecundação é externa, é fácil observar, em volta do óvulo que flutua inerte, a corrida dos espermatozoides que o cercam como uma auréola. Essa competição é também um fenómeno importante e encontrado na maioria das espécies. Muito menor do que o óvulo, o espermatozoide é geralmente emitido em quantidades muito mais consideráveis, e cada óvulo tem vários pretendentes». In Simone Beauvoir, O Segundo Sexo, volume 1, 1949, 2009 / 2015, Quetzal Editores, colecção Serpente Emplumada, ISBN 978-989-722-193-4.

Cortesia de Quetzal Editores/JDACT