terça-feira, 14 de março de 2017

O Baile de Máscaras. Joanna Taylor. «Os dedos dele enterram-se no meu braço. És amiga dela. Vais levar-me até ela, ameaça. Respiro fundo e preparo-me para o ludibriar»

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«(…) Eu costurei este vestido, explico. Em segredo, todas as manhãs, durante um mês, enquanto trabalhava em casa de mrs. Wilkes. Comprei o tecido em Cheapside e sei costurar bem o suficiente, pois fui ensinada a fazer a minha própria roupa. O homem olha para o algodão estampado barato e, em seguida, para o meu rosto. Então e o resto?, pergunta ele, ao fim de um momento. A combinação e o espartilho. Aponta para os meus trajes menores. A combinação sempre foi minha, vim para Londres aos dezassete anos, respondo. O espartilho foi pago. Pode perguntar a mrs. Wilkes. Engulo em seco, porque esta situação ainda se pode virar contra mim. E se Kitty já saiu para beber, não vai pensar em ir à minha procura na prisão. Talvez durante vários dias. E a roupa da Kitty?, pergunta ele. Isso é entre você e ela, digo num tom uniforme. Ele dá um passo em frente e agarra-me no braço. Vais dizer-me onde posso encontrá-la. Não sei onde ela está, minto. Ela tem um cavalheiro novo, um nobre. Está sob sua protecção. Ele leva-a muitas vezes durante dias. Vocês partilham um quarto, insiste o cobrador. Deves saber onde ela está. Não sei, digo. Juro que não sei.
Às vezes espanta-me como me tornei competente a mentir. Nunca foi uma habilidade que procurasse aprender. Suponho que surgiu por necessidade. Os dedos dele enterram-se no meu braço. És amiga dela. Vais levar-me até ela, ameaça. Respiro fundo e preparo-me para o ludibriar. Senhor, digo, se me deixar marcas no braço, provocará estragos que deverão ser pagos. Tenho um acordo com um comerciante, que me considera sua propriedade. Ele irá atrás de si e dispõe de homens fortes para tratar do caso. No rosto do cobrador de dívidas instalou-se a incerteza. Mas a sua mão permanece firme. Os olhos percorrem o quarto, avaliando se eu possuo o suficiente para estar a dizer a verdade. Sustenho a respiração enquanto ele avalia os modestos aposentos que Kitty e eu arrendamos. Decorámo-los o melhor que pudemos, para se parecer como um boudoir requintado. Além do passe de mágica de fazer a nossa cama simples parecer uma cama de dossel, os nossos móveis são escassos. Além do mais, o colchão emanava o cheiro da palha barata, por isso colocámos raminhos de alfazema debaixo da cama. É um truque para enganar os aristocratas, mas não funciona com este homem. O cheiro paira no ar, acusador.
Vejo o cobrador de dívidas avaliar o nosso espelho e depois o nosso baú. Kitty, mendigou esta peça de mobiliário a um velho pretendente. Tem o brasão da família, por isso parece mais grandioso do que é. Por um momento, acho que isso vai balançar as coisas a meu favor. Em seguida, os olhos do cobrador fixam-se levemente na velha janela de batente e no chão. Já não temos tapete para disfarçar o soalho empoeirado. O velho foi comprado barato na Ponte de Londres e tinha pulgas. Uma vez que somos duas, e os homens não gostam de dividir a cama, Kitty e eu não conseguíamos aguentar as picadas de pulgas quando tínhamos de nos deitar no tapete. Os olhos do homem deslocam-se até à porta falsa, avaliando a ilusão de um segundo quarto. O embuste é convincente o suficiente à luz de velas. Mas estamos no fim da tarde, e a luz do sol poente entra através da nossa pequena janela. Espero, com a respiração suspensa. Lentamente, a pressão dos dedos afrouxa no meu braço. Levo a mão àquele ponto por reflexo, esfregando-o. Podes dizer à Kitty que ela tem de pagar a dívida. Hei-de encontrá-la, quer tenha um pretendente, quer não, diz ele. Eu digo-lhe.
O homem inclina a cabeça ligeiramente. Ainda está demasiado perto para que me sinta confortável. Se ela não pagar, acrescenta, varrendo o meu corpo com os seus olhos, eu venho à tua procura, e vais trabalhar comigo para pagares a dívida dela. Engulo em seco, mantendo o meu rosto neutro. Ele olha-me daquela forma que os homens nos olham quando decidem que lhes podemos ser úteis. E acredita em mim, continua, com um olhar lascivo, vou fazer-te trabalhar no duro. A minha expressão deve ter-se aguentado, porque a luz no rosto dele esmorece um pouco, como se eu não tivesse reagido da maneira que esperava. Ele vira-se e cospe. Meretrizes, resmunga ao ir-se embora. Acham-se muito boas quando são jovens e bonitas. Mas, no fim, todas vocês acabam a mendigar na sarjeta». In Joanna Taylor, O Baile de Máscaras, 2015, Edições ASA II, 2016, ISBN 978-989-233-518-6.

Cortesia de EASA/JDACT