quarta-feira, 22 de março de 2017

Nómada. Ayaan Hirsi Ali. «Descobri sobre a doença dele em Junho de 2008, algumas semanas antes da sua morte. Eu tinha recebido uma mensagem de Marco, meu ex-namorado holandês»

jdact e wikipedia

«(…) Ao entrar na Unidade de Terapia Intensiva do Royal London Hospital para ver meu pai, receei ter chegado tarde demais. Ele estava estirado no leito hospitalar, com a boca estranhamente aberta, e numerosas e ameaçadoras máquinas estavam ligadas ao seu corpo. Elas emitiam bipes e tiques, e as linhas que se erguiam e mergulhavam em rápida sucessão nos seus monitores pareciam indicar uma breve contagem regressiva até à sua morte. Abeh, gritei com toda a força. Abeh, sou eu, Ayaan. Apertei a mão dele entre as minhas e, ansiosa, beijei a sua testa; os olhos do meu pai se abriram subitamente. Ele sorriu, e o calor do seu olhar e o seu sorriso encheram toda a sala. Pus a palma das minhas mãos sobre a mão direita dele, e ele as apertou e tentou falar, tentou obrigar algumas palavras a saírem. Mas só o que conseguiu foi emitir um chiado e tossir sem fôlego. Fez esforço para se sentar, mas não era capaz de sustentar o peso do próprio corpo. Ele estava coberto com lençóis brancos, e dava a aparência de estar amarrado na cama. Calvo, parecia ser muito menor do que nas minhas lembranças. Havia um terrível tubo na sua garganta que fornecia a ele oxigénio por meio de um respirador; outro tubo saía dos rins para uma máquina de diálise, e um emaranhado de tubos entrava-lhe pelo pulso. Sentei-me ao lado dele e acariciei-lhe o rosto, dizendo: abeh, abeh, está tudo bem. Abeh, meu pobre abeh, o senhor está tão doente. Ele não pôde responder. Quando tentava falar, caía novamente na cama, com o peito ofegante, e a máquina que lhe fornecia oxigênio sibilava em busca de mais ar. Então, depois de repousar por alguns instantes, ele fazia nova tentativa. Indicava com a mão direita que queria uma caneta para escrever, mas mal era capaz de segurá-la; seus músculos estavam muito fracos, e só conseguia fazer rabiscos no papel. O esforço para segurar a caneta era tamanho que começou a escorregar para fora da cama.
A ala hospitalar era ampla, e as enfermeiras estavam ocupadas trocando lençóis e dando remédios. Percebi que o médico tinha sotaque e, por um instante, pensei que fosse do México. Quando perguntei de onde vinha, ele disse-me que era espanhol. A ala era administrada quase que exclusivamente por imigrantes. Não soube distinguir os enfermeiros dos médicos e, enquanto olhava ao redor, tentei adivinhar a origem dos membros da equipa, dos técnicos e dos auxiliares: a península indiana, negros que pensei serem da África oriental ou ocidental, pessoas que pareciam do norte da África, algumas mulheres com lenços na cabeça sobre os uniformes médicos. Se havia funcionários somalis na ala, eu não os vi nem eles me viram, felizmente. Uma das enfermeiras desenrolou um avental de plástico, amarrou-o ao redor da cintura e pediu que eu me afastasse, mas meu pai não quis soltar-me e tive de forçar seus dedos a largarem minha mão. A enfermeira o deixou numa posição mais erecta, apoiando-o em travesseiros e olhando para mim com interesse. Uma das enfermeiras me disse que tinha lido uma reportagem sobre mim numa revista, e por isso algumas delas sabiam quem eu era. Afastei o olhar e reparei no prontuário médico afixado à cama; meu pai estava registado como Hirsi Magan Abdirahman, apesar de seu nome ser Hirsi Magan Isse. Um jovem médico contou-me que meu pai tinha leucemia. Ele poderia ter sobrevivido por mais um ano se não tivesse desenvolvido uma infecção, que se tornara séptica. Apesar de ter saído do coma no qual entrara alguns dias antes, apenas os aparelhos o mantinham vivo. Perguntei seguidas vezes se meu pai estava sentindo dor, mas o médico disse que não; que havia desconforto, mas não dor. Perguntei ao médico se poderia tirar uma foto com meu pai. Ele respondeu que não. Disse que para isso seria necessário pedir permissão ao paciente, e o paciente não estava em condições de tomar esse tipo de decisão.
Em 1992, quando o deixei em Nairóbi, o meu pai era um homem forte e vivaz. Ele podia ser feroz, até assustador, um leão, um líder entre os homens. Durante a minha infância ele foi o meu lorde, o meu herói, alguém cuja ausência era misteriosa, por cuja presença eu ansiava, cuja aprovação significava tudo e cuja ira eu temia. Agora eram muitas as desavenças entre nós. Eu o ofendera profundamente em 1992, ao fugir do marido somali que ele escolhera para o meu matrimónio. Ele tinha-me perdoado por isso; conversámos sobre o assunto, pouco à vontade, pelo telefone. Uma década mais tarde eu o ofendi novamente, quando me declarei incrédula e critiquei abertamente o tratamento dispensado pelo islão às mulheres. O nosso último conflito, o pior, ocorreu depois que fiz um filme sobre o abuso e a opressão a que são submetidas as muçulmanas, Submission, com Theo van Gogh, em 2004. Depois desse episódio o meu pai simplesmente parou de atender os meus telefonemas; ele recusou-se a falar comigo. Algum tempo depois da morte de Theo, quando tive de me esconder e o meu telefone foi-me retirado, parei de tentar entrar em contacto com ele. Quando as pessoas me perguntavam a seu respeito, eu respondia apenas que éramos distantes.
Descobri sobre a doença dele em Junho de 2008, algumas semanas antes da sua morte. Eu tinha recebido uma mensagem de Marco, meu ex-namorado holandês, dizendo que a minha prima que vivia na Inglaterra, Magool, estava procurando-me com urgência. Ela não é próxima da família do meu pai, mas tem recursos. Quando minha meia-irmã, Sahra, percebeu como o pai estava doente, ela pediu a Magool que tentasse encontrar-me, e Magool telefonou para Marco, a única pessoa de quem eu havia sido próxima que ela conhecera, cinco anos antes, da última vez que havíamos conversado. Telefonei para meu pai no seu apartamento num conjunto habitacional localizado no East End de Londres. Já era tarde, noite, onde ele se encontrava, e fazia uma linda tarde de sol na Costa Leste dos Estados Unidos, onde eu estava. Minhas mãos tremiam. Quando atendeu o telefone. A sua voz era exactamente como deveria ser, forte e enérgica. Ao ouvir a voz dele percebi as lágrimas enchendo os meus olhos e disse a única coisa que quis transmitir, que eu o amava, e pude ouvi-lo sorrir, um sorriso tão poderoso que pareceu atravessar a linha telefónica. É claro que me amas!, irrompeu ele. E é claro que eu te amo! Não reparou como os pais acalentam e se relacionam com os filhos? Não viu na natureza como os animais cuidam das suas crias e as lambém? É claro que eu te amo. És minha filha. Eu disse a meu pai o quanto queria vê-lo, mas expliquei que poderia ser difícil garantir a minha segurança numa visita ao seu apartamento, localizado numa área onde predominam os imigrantes, na sua maioria muçulmanos. Visitar um lugar como aquele, desprotegida, seria como um insecto minúsculo a voar numa sala repleta de imensas teias de aranha: a mosquinha pode chegar ao outro lado sem nada sofrer, mas se for apanhada as consequências são óbvias». In Ayaan Hirsi Ali, Nomad, From Islam to America, Nómade, tradução de Augusto Calil, Companhia das Letras, 2010, ISBN 978-858-086-374-1 e / ou In Ayaan Hirsi Ali, Nómada, Galaxia Gutenberg, 2011, ISBN 978-848-109-928-7.

Cortesia da CdasLetras/GGutenberg/JDACT