terça-feira, 28 de março de 2017

Histórias Brejeiras. Artur Azevedo. «Teria sido realmente amada? Não, mas apenas desejada, tanto assim que todos os seus namorados se esqueceram dela...»

jdact e wikipedia

À Não-Me-Toques!
«Passavam-se os anos, e Antonieta ia ficando para tia, não que lhe faltassem candidatos, mas, infeliz moça!, naquela capital de província não havia um homem, um só, que ela considerasse digno de ser seu marido. Ao Comendador Costa começavam a inquietar seriamente as exigências da filha, que repelira, já, com desdenhosos muxoxos, uma boa dúzia de pretendentes cobiçados pelas principais donzelas da cidade. Nenhuma destas se casou com rapaz que não fosse primeiramente enjeitado pela altiva Antonieta. Que diabo!, dizia o comendador à sua mulher, dona Guilhermina, estou vendo que será preciso encomendar-lhe um príncipe! Ou então, acrescentava dona Guilhermina, esperar que algum estrangeiro ilustre, de passagem nesta cidade… Está bem aviada! Em quarenta anos que aqui estou, só dois estrangeiros ilustres cá têm vindo: o Agassiz e o Herman. Entretanto, eram os pais os culpados daquele orgulho indomável. Suficientemente ricos tinham dado à filha uma educação de fidalga, habituando-a desde pequenina a ver imediatamente satisfeitos os seus mais custosos e extravagantes caprichos. Bonita, rica, elegante, vestindo-se pelo último figurino, falando correctamente o francês e o inglês, tocando muito bem o piano, cantando que nem uma prima-dona, tinha Antonieta razões sobejas para se julgar um avis rara na sociedade em que vivia, e não encontrar em nenhuma classe de homem que merecesse a honra insigne de acompanhá-la ao altar.
Uma grande viagem à Europa, empreendida pelo comendador em companhia da esposa e da filha, completara a obra. Ter estado em Paris constituía, naquela boa terra, um título de superioridade. Ao cabo de algum tempo, ninguém mais se atrevia a erguer os olhos para a filha do Comendador Costa, contra a qual se estabeleceu pouco a pouco certa corrente de animada diversão. Começaram todos a notar-lhe defeitos parecidos com os das uvas de La Fontaine, e, como a qualquer indivíduo, macho ou fêmea, que estivesse em tal ou qual evidência, era difícil escapar ali a uma alcunha, em breve Antonieta se tornou conhecida pela Não-me-toques.
Teria sido realmente amada? Não, mas apenas desejada, tanto assim que todos os seus namorados se esqueceram dela... Todos, menos o mais discreto, o mais humilde, o único talvez, que jamais se atrevera a revelar os seus sentimentos. Chamava-se José Fernandes, e era o primeiro empregado da casa do Comendador Costa, onde entrara aos dez anos de idade, no mesmo dia em que chegara de Portugal. Por esse tempo veio ao mundo Antonieta. Ele vira-a nascer, crescer, instruir-se, fazer-se altiva e bela. Quantas vezes a trouxera ao colo, quantas vezes a acalentara nos braços ou a embalara no berço! E, alguns anos depois, era ainda ele quem todas as manhãs a levava e todas as tardes ia buscá-la ao colégio. Quando Antonieta chegou aos quinze anos e ele aos vinte e cinco, Seu José (era assim que lhe chamavam) notou que a sua afeição por aquela menina se transformava, tomando um carácter estranho e indefinível; mas calou-se, e começou de então por diante a viver do seu sonho e do seu tormento Mais tarde, todas as vezes que aparecia um novo pretendente à mão da moça, ele assustava-se, tremia, tinha acessos de ciúmes, que lhe causavam febre, mas o pretendente era, como todos os outros, repelido, e ele exultava na solidão e no silêncio do seu platonismo.
Materialmente, Seu José sacrificara-se pelo seu amor. Era ele, como se costuma dizer (não sei com que propriedade) o tombo da casa comercial do Comendador Costa; entretanto, depois de tantos anos de dedicação e amizade, a sua situação era ainda a de um simples empregado; o patrão, ingrato e egoísta, pagava-lhe em consideração e elogios o que lhe devia em fortuna. Mais de uma vez apareceram a Seu José ocasiões de trocar aquele emprego por uma situação mais vantajosa; ele, porém, não tinha ânimo de deixar a casa onde ao seu lado Antonieta nascera e crescera». In Artur Azevedo, Histórias Brejeiras, 1962, Projecto Livro Livre, nº 519, Iba Mendes, 2014.

Cortesia de IMendes/JDACT