quarta-feira, 22 de março de 2017

Herege. Ayaan Hirsi Ali. «O islão está numa encruzilhada. Os muçulmanos, não dezenas ou centenas, mas dezenas de milhões e até centenas de milhões, precisam tomar a decisão consciente de confrontar…»

jdact e wikipedia

«(…) Os muçulmanos de Medina podem explorar ideias desse tipo e ser uma ameaça para todos nós. No Médio Oriente e em outras partes, a sua visão de um retorno violento à época do Profeta ameaça potencialmente centenas de milhares com a morte e milhões com a subjugação. No Ocidente, implica não só um risco crescente de terrorismo, mas também uma subtil erosão das árduas conquistas das feministas e defensores dos direitos de minorias. Os muçulmanos de Medina também estão solapando a posição dos muçulmanos de Meca que tentam levar uma vida sossegada nos seus casulos culturais por todo o mundo ocidental. Mas a ameaça maior é para os dissidentes e reformistas: os muçulmanos modificados. São eles que enfrentam ostracismo e rejeição, que têm de sofrer todo o tipo de insulto, lidar com ameaças de morte, ou que são mortos. Até agora, os seus esforços têm sido difusos e individuais, em comparação com as acções colectivas altamente organizadas dos muçulmanos de Medina. É nosso dever para com os dissidentes, para com a sua coragem e convicção, mudar isso. Cheguei à conclusão de que a única estratégia viável que pode trazer uma esperança de conter a ameaça representada pelos muçulmanos de Medina é aliar-me aos dissidentes e reformistas e ajudá-los a: 1. identificar e repudiar as partes do legado moral de Maomé oriundas de Medina; e 2. persuadir os muçulmanos de Meca a aceitar essa mudança e rejeitar o chamado dos muçulmanos de Medina à intolerância e à guerra.
Este não é um livro de história. Não procuro dar uma nova explicação para o facto de cada vez mais muçulmanos aderirem aos elementos mais violentos do islão na minha época, por que razão, em resumo, os muçulmanos de Medina estão hoje em ascensão. Tento refutar a ideia, quase universal entre os liberais do Ocidente, de que a explicação reside nos problemas económicos e políticos do mundo muçulmano e que esses problemas, por sua vez, podem ser explicados com base na política externa ocidental. Isso é atribuir importância demasiada a forças exógenas. Há outras partes do mundo que lutam para fazer a democracia funcionar ou para lidar com a riqueza advinda do petróleo. Há outros povos além dos muçulmanos que se queixam do imperialismo norte americano. No entanto, quase não se tem indício de algum crescimento de terrorismo, explosões suicidas, guerra sectária, punições medievais e mortes em nome da honra no mundo não muçulmano. Existe uma razão para que uma proporção crescente da violência organizada no mundo esteja acontecendo em países onde o islamismo é a religião de uma parcela substancial da população.
O argumento deste livro é que as doutrinas religiosas fazem diferença e precisam de reforma. Factores não doutrinários, como o uso pelos sauditas das receitas do petróleo para financiar o wahabismo e o apoio do Ocidente ao regime saudita, são importantes, mas a doutrina religiosa é mais importante. Por mais que para muitos académicos ocidentais seja difícil acreditar, quando pessoas cometem actos violentos em nome da religião, elas não estão tentando dignificar de alguma forma os seus agravos socio-económicos ou políticos básicos. O islão está numa encruzilhada. Os muçulmanos, não dezenas ou centenas, mas dezenas de milhões e até centenas de milhões, precisam tomar a decisão consciente de confrontar, debater e por fim rejeitar os elementos violentos da sua religião. Em certo grau, em grande medida devido à repulsa generalizada pelas indizíveis atrocidades do EI, Al-Qaeda e o resto, esse processo já começou.
Mas, em última análise, ele requer a liderança dos dissidentes. E estes, por sua vez, não têm como conseguir sem o apoio do Ocidente. Imagine se, na Guerra Fria, o Ocidente tivesse apoiado não os dissidentes do Leste Europeu, como Václav Havel e Lech Walesa, mas a União Soviética, como representante dos comunistas moderados, na esperança de que o Kremlin nos ajudasse contra terroristas da estirpe da Facção do Exército Vermelho. Imagine-se um presidente norte-americano sofresse uma lavagem cerebral e saísse dizendo ao mundo que o comunismo é uma ideologia pacífica. Isso teria sido desastroso. No entanto, essa é essencialmente a postura do Ocidente em relação ao mundo muçulmano actual. Nós ignoramos os dissidentes». In Ayaan Hirsi Ali, Herege, tradução de Laura Motta e Jussara Simões, Editora Schwarcz, Companhia das Letras, 2015, ISBN 978-854-380-373-9.

Cortesia de ESchwarcz/CLetras/JDACT