domingo, 12 de março de 2017

Erec e Enide. Manuel V. Montalbán. «Há quarenta anos que Riquer não é o meu chefe, mas sim meu mestre. E assim continua. Não é insultante o tom de Myrna, mas sim completamente irónico»

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«(…) É que a lenda arturiana é uma certeza em si mesma, como a religião católica ou a terapia à base de pílulas de alho. A Myrna quer brigar comigo e exibe a sua expressão mais desafiante enquanto me diz: eu creio como Hume, insisto, Hume, David Hume, meu compatriota, que só são válidos os raciocínios experimentais relativos a factos ou à experiência. Citar Hume nesta altura é como citar Santo Agostinho a propósito do Bem e do Mal. Todas as tuas dúvidas racionalistas rendem-se perante o teu filho adoptivo, Parsifal, o demandador do Santo Graal. - E quem é que te disse a ti que verdade é que estou à procura quando ironizo sobre o evidente, a cristandade do mito do Santo Graal? Ainda que seja por vezes tão idealista, estou de acordo com Duby quando diz que o historiador destas épocas avança às cegas e algumas das suas perguntas permanecem sempre sem resposta. Isso já o disseram Agamémnon e o se porqueiro. Não é um demérito, pelo contrário. O fascinante do passado e muito especialmente da Idade Média e tudo o que não sabemos. Porque é que mentes a ti própria? O que fascina é a loucura do cavaleiro à procura da transcendência, não o que essa enteléquia revela das condições subjectivas e objectivas comprováveis no século XII ou XIII. Quando eu me meti no romanismo a visão erudita dominava tudo, acumulativa de grandes ou pequenos desvelos e, agora, assume-se, pelo contrário, maioritariamente, como um avant-la-lettre do realismo mágico. Isso explicaria, por exemplo, o trabalho de Vargas Llosa sobre uma obra capital do cavalheirismo, Tirant lo Blanc. que, a propósito, foi assessorado pelo teu chefe, Martín de Riquer.
Há quarenta anos que Riquer não é o meu chefe, mas sim meu mestre. E assim continua. Não é insultante o tom de Myrna, mas sim completamente irónico, sobretudo a última afirmação dirigida ao Prémio Carlomagno e ao homem mais homenageado, pelo menos, das ilhas de San Simon, e assim o entendem os outros porque se riem da graça e conseguem dissipar toda a sombra de oposição na nossa sobremesa, que para meu desespero se alonga até que aparecem os primeiros bocejos, entre eles os meus, invasores, sem misericórdia para com o desejo que os meus olhos enviam a Myrna. Basta já de dizer disparates. Deixa que este par de mentecaptos vá para a cama. E quando parece evidente que vão para a cama, procuro na minha carteira a pílula de Viagra e engulo-a com a ajuda do resto de um excelente vinho de Gytian. Há que controlar o açúcar no sangue, justifico-me e Myrna aplaude. Finalmente descobrimos onde é que o emérito doutor Júlio Matasanz guarda o açúcar.
Despedimo-nos os quatro à medida que chegávamos aos nossos quartos, Myrna no primeiro andar, pelo que digo em voz alta: tens cá uma sorte. Eu estou no trezentos e um. Uma suíte mas lá em cima, lá em cima. Os outros descolam e entro nos meus aposentos, tentando adivinhar os efeitos que a pílula pudesse ter causado na minha psique ou no meu chouriço, e como a psique parece excitada, o chouriço permanece em repouso e à espera, talvez, da provocação da presença física de Myrna. Da presença física de uma mulher quase sessentona que já não encaixava no formato da exaltante Myrna War Breast de há trinta anos? Não quero ficar a sós com esta evidência, não fosse os efeitos do Viagra reagirem ao contrário, e visto quanto antes o pijama à espera que Myrna toque à minha porta, enquanto a recordo anos atrás em sequências estimulantes que não chegam à minha memória com a fluidez esperada, pelo contrário, aparecem como ruídos outras situações como aquela em que Myrna muito bêbeda começou a mi… quando eu tentava penetrá-la por detrás e no dia seguinte, morta de vergonha, não assistiu às sessões do congresso. Já passou um quarto de hora desde que tomei a pílula de Viagra e começa a ser urgente que Myrna War Breast se apresente com toda a sua matéria da Bretanha, e assim o interpreto quando oiço toques discretos na minha porta. Não posso evitar levar a mão ao sexo para verificar se prometia uma alta madrugada sem piedade e noto-o quase a fazer recordar os seus melhores momentos, mas ao abrir a porta de sorriso feito sai-me o Estremoz com cara de delinquente biológico. Desculpa que te incomode, mestre, mas não terás por aí algum digestivo ou sais de frutos? Os mariscos caíram-me mal nas úlceras e o senhor da recepção disse que ainda não reabasteceram a farmácia. Até amanhã». In Manuel Vázquez Montalbán, Erec e Enide, 2002, Difel, Algés, 2003, ISBN 972-29-0651-8.

Cortesia de Difel/JDACT