sexta-feira, 3 de março de 2017

Claraboia. José Saramago. « Ao menos, podias esperar até mais logo. Não gosto nada de questões com a vizinhança... Isaura encolheu os ombros»

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«(…) Isaura sempre gostava daqueles momentos em que, antes de curvar a cabeça sobre a máquina, deixava correr os olhos e o pensamento. A paisagem era sempre igual, mas só a achava monótona nos dias de verão teimosamente azuis e luminosos em que tudo é evidente e definitivo. Uma manhã de nevoeiro como esta, de nevoeiro delgado que não impedia de todo a visão, cobria a cidade de imprecisões e de sonho. Isaura saboreava tudo isto. Prolongava o prazer. No rio ia passando uma fragata, tão maciamente como se flutuasse numa nuvem. A vela vermelha tornava-se rosada através das gazes do nevoeiro. Súbito, mergulhou numa nuvem mais espessa que lambia a água e, quando ia surdir de novo nos olhos de Isaura, desapareceu atrás da empena de um prédio. Isaura suspirou. Era o segundo suspiro nessa manhã. Sacudiu a cabeça como quem sai de um mergulho prolongado, e a máquina matraqueou com fúria. O tecido corria debaixo da patilha e os dedos guiavam-no mecanicamente como se fizessem parte da engrenagem. Aturdida pelo barulho, pareceu a Isaura que alguém lhe falava. Deteve a roda bruscamente e o silêncio refluiu. Voltou-se para trás: o quê? A mãe repetiu: não achas que é um bocadinho cedo? Cedo? Porquê? Bem sabes... O vizinho... Mas, minha mãe, que hei de fazer? Que culpa tenho eu de que o vizinho de baixo trabalhe de noite e durma de dia? Ao menos, podias esperar até mais logo. Não gosto nada de questões com a vizinhança... Isaura encolheu os ombros. Pedalou outra vez e disse, elevando a voz acima do ruído da máquina: e a mãe quer que eu vá à loja pedir que esperem, não é?
Cândida abanou devagar a cabeça. Era uma criatura sempre perplexa e indecisa, que sofria o domínio da irmã, mais nova que ela três anos, e com a consciência aguda de que vivia à custa das filhas. Desejava, acima de tudo, não incomodar ninguém, passar despercebida, apagada como uma sombra na escuridão. Ia responder, mas, ao ouvir os passos de Amélia, calou-se e voltou à cozinha. Entretanto, Isaura, lançada no trabalho, enchia a casa de barulho. O chão vibrava. As faces empalidecidas coloriam-se-lhe pouco a pouco e uma gota de suor começava a brotar-lhe da testa. Sentiu mais uma vez que alguém se aproximava e abrandou. É escusado trabalhares tão depressa. Cansas-te. Tia Amélia nunca dizia palavras supérfluas. Apenas as necessárias e não mais que as indispensáveis. Mas dizia-as de uma maneira que aqueles que a ouviam ficavam a apreciar o valor da concisão. As palavras pareciam nascer-lhe na boca no momento em que eram ditas: vinham ainda repletas de significação, pesadas de sentido, virgens. Por isso dominavam e convenciam. Isaura abrandou a velocidade.
Daí a poucos minutos, a campainha da porta tocou. Cândida foi abrir, demorou-se alguns instantes e regressou desorientada e aflita, murmurando: eu não dizia?... Eu não dizia?... Amélia levantou a cabeça; Que é? É, a vizinha de baixo que vem reclamar. Este barulho... Vai lá tu, vai lá tu... A irmã deixou a louça que estava lavando, limpou as mãos a um pano e dirigiu-se à porta. No patamar estava a vizinha de baixo. Bom dia, dona Justina. Que deseja? Amélia, em qualquer momento e em qualquer circunstância, era a polidez em pessoa. Mas bastava-lhe carregar na polidez para tornar-se terrivelmente fria. As pupilas pequeníssimas cravavam-se no rosto que fitavam e provocavam uma impressão de mal-estar e de constrangimento impossíveis de reprimir. A vizinha entendera-se bem com a irmã de Amélia e estivera quase a concluir o que trazia para dizer. Aparecia-lhe agora um rosto menos tímido e um olhar mais directo. Articulou: bom dia, dona Amélia. É o meu marido... Trabalha toda a noite no jornal, como sabe, e só de manhã é que pode descansar... Fica sempre aborrecido quando o acordam e eu é que tenho que o ouvir. Se pudessem fazer menos barulho com a máquina eu agradecia...
Bem sei. Mas a minha sobrinha precisa de trabalhar. Compreendo. Por mim, não me importaria, mas sabe como são os homens... Sei, sei. E também sei que o seu marido não se preocupa muito com o descanso dos vizinhos quando entra de madrugada. Que hei de eu fazer? Já desisti de o convencer a subir a escada como gente. A figura longa e macilenta de Justina animava-se. Nos seus olhos começava a brilhar uma pequena luz maligna. Amélia terminou a conversa: esperaremos mais um bocado. Vá descansada. Muito obrigada, dona Amélia». In José Saramago, Claraboia, 1953, Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-212-441-6.

Cortesia ECaminho/JDACT