sábado, 11 de março de 2017

A Profecia de Istambul. Alberto S. Santos. «Jaime Pantoja divertia-se com o especial gosto pela descoberta do corpo humano e das maleitas que o poderiam afectar, em especial quando acompanhava Rodrigo Cervantes nas colheitas das sangrias»

jdact
O banquete de Adrianópolis. Março de 1305. Constantinopla e Adrianópolis
«(…) O dia 5 de Abril de 1305 foi mesmo o último: para ele, Roger de Flor, e para tantos dos seus fiéis soldados! Os três primeiros atacantes chegaram mais cedo à barca de Caronte, transportados pela ferina força das mãos treinadas do grande comandante, mas ele já não pôde evitar que sete espadas o trespassassem como se acabassem de abater um animal selvagem. Estava cozinhado o veneno da vingança. Nos derradeiros estertores, Roger não temia só pela vida. O espírito voou-lhe, novamente, para a sua tenda cor de açafrão, onde guardava a relíquia que prometera levar ao seu lugar: o sarcófago de Frederico II. Não cumprira essa missão, como era seu dever! Temia, agora, pela sua salvação, pela de Maria e pela sua linhagem que, três meses antes, se iniciara no seu ventre. Mas, sobretudo, pela humanidade! Maria, só tu ou a nossa descendência poderão agora salvar-nos!..., foi a predicção com que dobrou o limiar derradeiro da peregrina existência.

O Pacto de Melchior. ... Cerca de 250 anos depois; Março de 1554
Havia muitos dias em que os sonos de Jaime Pantoja eram intermitências entre momentos mágicos, feitos extraordinários e batalhas sempre vencidas, e o breu agreste do quarto onde dormia, embora, de dia, fosse branco de cal. Contudo, aquele rapaz, cujo inquisitivo olhar cinzento iluminava tudo onde pousasse, perscrutava todos os segredos, fulminava os aborrecimentos, sabia que aquele dia 2l de Março de 1554 que se preparava para alvorecer lhe traria, finalmente, o momento por que suspirara durante tanto tempo. Esperou, já desperto, as últimas horas, até que a criada lhe bateu à porta, acreditando num sono completo, como aquele em que o jovem jazia matematicamente as noites inteiras, depois de rezar e de se perder em pensamentos com Rosa, a rapariga que, nos últimos tempos, não lhe saía da cabeça. Vestiu-se, num repente, espargiu água pelo rosto e alisou os longos cabelos louros que, irreverentes, lhe bailavam sobre os ombros. Quando Córdova inteira ansiava, de tanto preparo, pelas faustosas solenidades da Semana Santa, interromperam-se os estudos de Jaime e dos amigos. Era a quarta-feira anterior à Páscoa, o dia marcado para subirem à serra e ouvirem o velho eremita, de quem Simão, o português, tantas vezes falara. Tudo fora combinado, em absoluto segredo, para aquela tarde, entre Jaime Pantoja, Simão Gonçalves e Fernando del Pozo.
Hoje estás agitado, Jaimito! Dormiste bem, ou passa-se algo que devas contar-me?! A tua cabeça parece estar bem longe desta sala! Jaime aprendera a interpretar o que Rodrigo Cervantes dizia com as mãos e com a boca para comunicar os seus intentos. Era um médico-cirurgião de remediada reputação, surdo como uma porta desde o nascimento, por isso, um homem triste, reservado. Mas a vida ensinara-lhe a perspicácia de entender, através da subtileza de alguns sinais, tudo o que à sua volta acontecia. Instalara-se em Córdova no ano anterior e, como precisava de um ajudante esperto e colaborante, muito folgou quando o tio solteiro de Jaime, que dele cuidava desde que os pais morreram, afogados num poço, lhe pediu que acolhesse o sobrinho nas horas vagas. O rapaz passou, assim, a tomar os primeiros contactos com a arte, antes de, como estava previsto para o ano seguinte, ingressar na Universidade de Salamanca. É verdade, Rodrigo! Nestas últimas noites, não tenho dormido muito bem... Acordo a pensar em aventuras, no meu futuro..., comunicou, com os sinais que nele aprendera. E que gostarias de fazer no futuro, meu rapaz? ... lutar, conquistar as terras longínquas, ser um grande soldado ao serviço de Sua Majestade, o Imperador dom Carlos! Para as Américas, para o Norte de África, qualquer sítio onde possa mostrar a minha valentia!... Jaime retorcia os lábios, imitando um bravo guerreiro, com o que procurava demonstrar coragem e ousadia. Ah, Jaimito, todos os jovens da tua idade sonham com essas aventuras. Mas, antes, tens de te preparar para a vida e ouvir os bons conselhos. Aprende bem esta arte de curar as gentes, pois nunca se saberá o quanto poderá ela ser-te útil, no futuro! O prático de medicina afagava os cabelos louros do petiz, certo de que o orientava correctamente, enquanto apontava, com cara de falso zangado, para os livros, cuja leitura lhe recomendara durante uma parte dos dias de visita: a Gramática, de António Nebrija, a Prática de Cirujía, de Juan Vigo, e o Tratado De Las Cuatro Enfermedades, de Lobera Ávila.
Embora fosse oficio não muito apreciado, a meio caminho entre o sangrador e o barbeiro, mas a um nível um pouco superior a qualquer artesão, o mester de Rodrigo suscitava um fascínio especial no jovem cordovês. Sempre que podia, e mesmo com a incompreensão dos amigos, que reclamavam a sua presença nas brincadeiras de rua, corria para casa do velho cirurgião, depois de ir espreitar o palácio do conde de Alcaudete, com a esperança de ver a rapariga com quem adormecia todas as noites, em pensamento. Esta, sabendo do percurso diário de Jaime, espreitava-o da janela e acenava-lhe, discretamente, à passagem, com um sorriso aberto. Antes de deixarem de se ver, punham o dedo sobre a ponta do próprio nariz: o código secreto que ambos inventaram para dizerem que davam um beijo um no outro. Os transeuntes estranhavam os trejeitos do rapaz, de indicador arqueado sobre o nariz, e virado para a janela do palácio.
Jaime Pantoja divertia-se com o especial gosto pela descoberta do corpo humano e das maleitas que o poderiam afectar, em especial quando acompanhava Rodrigo Cervantes nas colheitas das sangrias. Com o tempo, foi aprendendo a importância e medida certa para cada caso, examinava com atenção o mestre a reparar fracturas, a curar sequelas das rixas de estudantes, normalmente resultantes da valentia dos fanfarrões, acidentes em oficinas de vários mesteres; mas também procurava compreender o uso da palpitação do pulso, para entender tudo o que se poderia saber sobre males e alterações de humores na raça humana. Vá lá, segura bem nessa ampulheta, rapaz! Não percebo, mas hoje não estás mesmo nos teus dias!... Enquanto duas filhas de Rodrigo e um filho tartamudo de sete anos entravam na sala onde o médico elaborava as suas infusões medicinais, pedindo guloseimas através dos gestos que o pai já conhecia, Jaime abria, uma vez mais, aquele sorriso de quem está a escancarar uma janela interior com vista para locais tão desejados, mas que só ele conhecia. Espreitou por ela e entreviu os outros dois amigos à sua espera, na Plaza del Potro, perto de San Nicolás, de onde haviam combinado sair, depois do almoço. Torceu o nariz com vontade de afastar aquela visão, fruto da sua fabriquenta imaginação, pois a manhã primaveril ainda ia a meio. Jaimito, não me ouves?! Andrea, a filha mais nova do mestre, agarrava-lhe o braço direito, segurando um rebuçado, insistindo para que o aceitasse». In Alberto S. Santos, A Profecia de Istambul, Porto Editora, 2010, ISBN 978-972-004-103-6.

Cortesia de PEditora/JDACT