domingo, 5 de março de 2017

A Ilha Debaixo do Mar. Isabel Allende. «Não sofria de malária, como ele julgava, mas de sífilis, que devastava brancos, negros e mulatos, indiferentemente»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) No final de mil e seiscentos, a Espanha cedeu a parte ocidental da ilha à França, que lhe chamou Saint-Domingue e que haveria de se converter na colónia mais rica do mundo. Na época em que Toulouse Valmorain ali chegou, um terço das exportações de França, através do açúcar, café, tabaco, algodão, índigo e cacau, provinha da ilha. Já não havia escravos brancos, mas os negros somavam-se em centenas de milhares. O cultivo mais exigente era a cana-de-açúcar, o ouro doce da colónia; cortar a cana, triturá-la e reduzi-la a mosto não era trabalho de gente, mas sim de besta, como defendiam os plantadores. Valmorain acabava de fazer vinte anos quando foi convocado para ir à colónia por uma carta angustiante do agente comercial do seu pai. Quando desembarcou, estava vestido de acordo com a última moda: punhos de renda, peruca empoada e sapatos de salto alto, seguro de que os livros de exploração que tinha lido o capacitavam de sobra para assessorar o pai durante umas semanas. Viajava com um valet, quase tão galhardo como ele, vários baús com o seu vestuário e os seus livros. Definia-se como um homem de Letras e, quando regressasse a França, pensava dedicar-se à ciência. Admirava os filósofos e enciclopedistas, que tanto impacto tinham tido na Europa nas décadas recentes, e estava de acordo com algumas das suas ideias liberais: o Contrato Social de Rousseau tinha sido o seu texto de cabeceira aos dezoito anos. Assim que desembarcou, depois de uma travessia que por pouco não terminou em tragédia quando enfrentou um furacão no Caribe, teve a primeira surpresa desagradável: o seu progenitor não o esperava no porto. Foi recebido pelo agente, um judeu amável, vestido de preto da cabeça aos pés, que o pôs ao corrente das precauções necessárias para se movimentar pela ilha, lhe disponibilizou cavalos, um par de mulas para a bagagem, um guia e um miliciano para que os acompanhassem à habitation Saint-Lazare. O jovem jamais tinha posto os pés fora de França e tinha prestado muito pouca atenção às histórias, banais, regra geral, que o pai costumava contar durante as suas pouco frequentes visitas à família, em Paris. Não imaginou que alguma vez iria à plantação; o acordo tácito consistia na consolidação da fortuna na ilha pelo seu pai, enquanto ele cuidava da mãe e das irmãs e supervisionava os negócios em França. A carta que recebera fazia alusão a problemas de saúde, e pensou que se tratava de uma febre passageira, mas quando chegou a Saint-Lazare, depois de um dia de marcha desenfreada através de uma Natureza glutona e hostil, deu-se conta de que o pai estava a morrer.
Não sofria de malária, como ele julgava, mas de sífilis, que devastava brancos, negros e mulatos, indiferentemente. A doença atingira o seu último estado e o seu pai estava quase inválido, coberto de pústulas, com os dentes a abanar e a mente entre brumas. As curas dantescas de sangrias, mercúrio e cauterizações do pénis com arames em brasa não o tinham aliviado, porém, continuavam a praticá-las como acto de contrição. Acabava de fazer cinquenta anos e estava convertido num ancião que dava ordens disparatadas, urinava-se sem controlo e estava sempre numa rede com as suas mascotes, duas pretinhas acabadas de chegar à puberdade. Enquanto os escravos desencaixotavam a sua bagagem sob as ordens do valet, um janota que mal tinha aguentado a travessia de barco e estava espantado com as condições primitivas do lugar, Toulouse Valmorain ausentou-se para percorrer a vasta propriedade. Nada sabia do cultivo de cana, mas bastou-lhe aquele passeio para compreender que os escravos estavam esfomeados e que a plantação só se tinha salvado da ruína porque o mundo consumia açúcar com uma voracidade crescente. Nos livros de contabilidade, encontrou a explicação para as más finanças do pai, que não conseguia manter a família em Paris com o decoro correspondente à sua posição. A produção era um desastre e os escravos caíam como tordos; não teve dúvida de que os capatazes roubavam, aproveitando-se da clamorosa deterioração do amo. Amaldiçoou a sua sorte e dispôs-se a arregaçar as mangas e trabalhar, coisa que nenhum jovem do seu meio ponderava sequer: o trabalho era para gente de outra classe. Começou por conseguir um suculento empréstimo graças ao apoio e às ligações com banqueiros do agente comercial do seu pai, a seguir mandou os commandeurs aos canaviais, para trabalhar lado a lado com os mesmos que tinham martirizado antes, e substituiu-os por outros menos depravados, reduziu os castigos e contratou um veterinário, que passou dois meses em Saint-Lazare a procurar devolver alguma saúde aos negros. O veterinário não conseguiu salvar o seu valet, despachado por uma diarreia fulminante em menos de trinta e oito horas. Valmorain deu-se conta de que os escravos do pai duravam uma média de dezoito meses entre fugir ou cair mortos de fadiga, muito menos do que noutras plantações. As mulheres viviam mais do que os homens, mas rendiam menos no trabalho pesado dos canaviais e tinham o mau hábito de ficarem prenhes. Como sobreviviam muito poucas crias, os plantadores tinham calculado que a fertilidade entre os negros era tão baixa que não era rentável. O jovem Valmorain realizou as mudanças necessárias de forma automática, sem planos e depressa, decidido a avançar a toda a rapidez, mas quando o pai morreu, uns meses mais tarde, teve de enfrentar o facto inquestionável de estar falido. Não pretendia deixar os seus ossos naquela colónia infestada de mosquitos, mas, se partisse antes do tempo, perderia a plantação, e com ela os lucros e a posição social da sua família em França. Valmorain não tentou relacionar-se com outros colonos». In Isabel Allende, A Ilha Debaixo do Mar, 2009, Porto Editora, 2015, ISBN 978-972-001-948-6.

Cortesia de PEditora/JDACT