terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Moll Flanders. Daniel Defoe. «Em suma, como a narrativa foi criteriosamente depurada de toda frivolidade e licenciosidade antes presentes, pode ser utilizada, com cuidado, para o ensinamento da virtude e da religião»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Nos últimos tempos, surgiu no mundo tal quantidade de romances e outras obras de ficção que será difícil o público aceitar como verdadeira uma história que oculta não só o nome real como também outras particularidades da protagonista, por isso só nos cabe admitir que cada leitor forme sua própria opinião a respeito das páginas que seguem e julgue a narrativa como melhor lhe aprouver. Imagina-se que a autora conte aqui a sua própria história; logo nas primeiras linhas ela expõe as razões pelas quais considera conveniente esconder o seu nome vero, e depois disso em nenhum momento ela volta à questão. Na realidade, o texto original dessa narrativa foi transcrito em outras palavras, da mesma forma como se alterou um pouco o estilo da famosa senhora de quem falamos aqui: a principal mudança consistiu no uso de um vocabulário menos cru que o utilizado por ela, já que o original que nos chegou às mãos estava vazado numa linguagem típica de uma delinquente presa em Newgate, nada apropriada a uma penitente humilde e contrita, como ela professa ser. A pena empregada para aprimorar a sua história e torná-la acessível, enfrentou sérias dificuldades para dar-lhe trajes dignos de serem vistos e vertê-la numa linguagem digna de ser lida; quando uma mulher dissoluta desde a juventude, e pior, filha da libertinagem e do vício, se dispõe a relatar todas as suas práticas infames e até a estender-se às ocasiões e circunstâncias especiais que a conduziram à devassidão, e narrar toda a sua progressão na senda do crime ao longo de seis decénios, um autor se vê à míngua de recursos para conferir a essa exposição uma forma recatada, que não dê ensejo, sobretudo no caso de leitores de baixos instintos, a condutas contrárias à sua intenção.
Portanto, tivemos o máximo cuidado possível para que essa nova roupagem da história não saísse eivada de imagens luxuriosas ou de frases lascivas, nem mesmo nas piores situações descritas; em nome desse objectivo, foram suprimidas certas passagens licenciosas de sua vida, não passíveis de narração decorosa, enquanto abreviaram-se várias cenas: espera-se que o que remanesceu não escandalize os leitores mais púdicos ou os ouvintes mais recatados, e como até da pior história pode-se tirar o mais são proveito, esperamos que a moralidade faça o leitor manter-se sério, mesmo quando, aqui ou ali, a história possa incliná-lo ao contrário; contar a história de uma vida iníqua, porém da qual mais tarde o personagem se arrepende, impõe que a parte deplorável seja mostrada com toda a maldade que corresponda à realidade, a fim de realçar e conferir beleza à parte do arrependimento, que decerto é a melhor e a mais fulgente, se narrada com igual aptidão e vigor. Há quem diga que a narração do arrependimento não pode ter a mesma exuberância, o mesmo brilho e a vivacidade da narração da parte iníqua; se existe alguma verdade nessa ideia, permitam-me dizer, é porque não houve igual prazer e fruição na leitura, e decerto é verdade que a diferença reside menos no valor real do tema que no gosto e na inclinação do leitor. Não obstante, como esta obra se dirige em especial aos que saberão lê-la e tirar dela o melhor benefício, o que lhes é recomendado ao longo de toda a narrativa, espera-se que a tais leitores agrade bem mais a moral que a fábula, mais a lição que a narração, mais o fim da narradora que a vida da biografada. Abundam nesta história incidentes interessantes, todos eles conducentes a lições úteis; são narrados de forma agradável, que instrui o leitor num sentido ou outro, a primeira parte da vida luxuriosa de Moll com o jovem cavalheiro de Colchester contém grande número de incidentes que verberam a conduta viciosa e advertem aqueles que se veem em situação semelhante quanto a seus resultados desastrosos, além de censurar a conduta desatinada e reprovável de ambos, o que compensa com sobras a descrição vívida que ela faz de sua insensatez e licenciosidade. O arrependimento de seu amante em Bath e como o justificado alarme criado por sua doença levou-o a abandoná-la, a judiciosa advertência feita contra intimidades entre amigos próximos, incapazes de manter as resoluções mais solenes e virtuosas sem ajuda divina, todas essas passagens hão de parecer, a uma pessoa de senso, de beleza mais genuína que todos os episódios amorosos que os antecedem.
Em suma, como a narrativa foi criteriosamente depurada de toda frivolidade e licenciosidade antes presentes, pode ser utilizada, com cuidado, para o ensinamento da virtude e da religião: ninguém poderá, sem incorrer em manifesta injustiça, lançar reprimenda alguma sobre ela ou sobre nossa decisão de publicá-la. Em todas as épocas, os defensores do teatro brandiram o seguinte argumento para persuadir o público de que suas peças são úteis e devem ser toleradas pelos governos de todos os Estados, mesmo os mais civilizados e religiosos: as suas obras têm propósitos virtuosos e, por mais vívidas que sejam as representações, não deixam de recomendar a virtude e os princípios generosos, assim como a censurar e condenar toda sorte de vícios e a corrupção de costumes: se isso fosse verdade e se eles seguissem à risca essa norma como pedra de toque de seus textos, muito haveria de ser dito em favor deles. Em toda sua imensa variedade, este livro cinge-se de modo rigoroso ao seguinte fundamento: não há acção indigna, em nenhuma parte dele, que não gere infelicidade e infortúnio; não entra em cena um só vilão superlativo que não tenha um fim malfadado ou não termine penitente; não se menciona um único malfeito que não seja vituperado na passagem mesma em que é citado, como tampouco nada de virtuoso e justo que não se faça acompanhar de louvor; o que poderíamos melhor contrapor à regra fixada para recomendar até mesmo aquelas representações de cenas a que se podem fazer objecções justas, como, por exemplo, más companhias, linguagem obscena etc.?» In Daniel Defoe, Moll Flanders, 1722, A vida Amorosa de Moll Flanders, Publicações Europa América, 1998, ISBN 978-972-104-443-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT