sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

A Misteriosa Chama da Rainha Loana. Umberto Eco. «E foi..., é, ..., será ainda um avô maravilhoso. E foi também um bom pai. E..., sou um bom marido? Paola ergueu os olhos para o céu: ainda estamos aqui, não?»

Cortesia de wikipedia e jdact

A área de Broca
«(…) Tóquio. Bomba atómica em Hiroshima. O general MacArtbur... Chega, chega. É como se recordasse tudo aquilo que se aprende por ter lido em algum lugar ou ouvido dizer, mas não o que está associado às suas experiências directas. Sabe que Napoleão foi derrotado em Waterloo, mas tente me dizer o que se lembra da sua mãe. Mãe só tem uma, mãe é mãe... Mas de minha mãe não me lembro. Imagino que tive uma mãe porque sei que é uma lei da espécie, mas..., aí está..., a névoa. Estou mal, doutor. É horrível. Preciso de alguma coisa para dormir de novo. Vou-lhe receitar, já exigi demais do senhor. Deite-se bem, assim, assim... Repito, acontece, mas tem cura. É preciso muita paciência. Mandarei que lhe tragam alguma coisa para beber, um chá por exemplo. Gosta de chá? Talvez sim, talvez não.
Trouxeram-me o chá. A enfermeira fez-me sentar apoiado nos travesseiros e colocou um carrinho na minha frente. Colocou água fumegante numa xícara com um envelope pequeno dentro. Devagar que queima, disse. Devagar como? Cheirava a taça e sentia um cheiro, como dizer, de fumaça. Queria provar o sabor do chá ou infusão, agarrei a xícara e engoli. Atroz. Um fogo, uma chama, uma bofetada na boca. Então é isso o chá fervente. Deve ser assim também com o café e a camomila de que tanto falam. Agora sei o que quer dizer queimar. Todos sabem que não se deve tocar o fogo, mas eu não sabia em que momento se pode tocar em água quente. Tenho que aprender a entender o limite, o momento no qual antes não pode e depois pode. Mecanicamente soprei o líquido, depois mexi com a colherinha, até decidir que já podia tentar outra vez. Agora o chá estava morno e bom de beber. Não estava certo de qual era o gosto do chá, qual o do açúcar, um deveria ser áspero e o outro doce, mas qual é o doce e qual o áspero? Juntos porém me agradavam. Beberei sempre chá com açúcar. Mas não fervente. O chá me deu uma sensação de paz e relaxamento e peguei no sono.
Acordei de novo. Talvez porque no sono eu estava coçando a virilha e o escroto. Debaixo das cobertas suei. Chagas de decúbito? Avitilha é húmida, mas passando-se a mão nela de modo demasiado enérgico, depois de uma primeira sensação de prazer violento, sente-se uma fricção desagradável. Com o escroto é melhor: passando-o por entre os dedos, delicadamente devo dizer, sem chegar a apertar os testículos, sente-se algo de granuloso e levemente peludo: é bom coçar o escroto, não é que a coceira suma logo, torna-se aliás mais forte, mas dá mais gosto de continuar. O prazer é a cessação da dor, mas a coceira não é uma dor, é um convite a se dar prazer. A comichão da carne. Transigindo-se com isso comete-se pecado. O jovem prevenido dorme supino com as mãos cruzadas no peito para não cometer actos impuros no sono. Coisa estranha, o prurido. E os meus tom…. Você é um escroto. Aquele sim tem os tom… roxos.
Abri os olhos. Na minha frente há uma senhora, não muito jovem, mais de cinquenta, me parece, com pequenas rugas em torno dos olhos, mas com um rosto luminoso, ainda fresco. Algumas mechas brancas, quase imperceptíveis, quase como se ela as tivesse clareado de propósito, uma socialite, como quem dissesse não quero passar por uma mocinha mas suporto bem a minha idade. Era bonita, mas quando jovem deve ter sido belíssima. Acarinhava minha testa. Yambo, disse-me. Lambo quem, senhora? O senhor é Yambo, é assim que todos o chamam, E eu sou Paola. Sou sua mulher. Me reconhece? Não senhora, desculpe, não Paola, sinto muito, o doutor deve ter lhe explicado.
Explicou, Não sabe mais o que aconteceu com você, mas ainda sabe muito bem o que aconteceu com os outros. Como eu faço parte da sua história pessoal, não sabe mais que somos casados há mais de trinta anos, Yambo, querido. E temos duas filhas, Carla e Nicoletta, e três maravilhosos netos. Carla casou cedo e teve dois filhos, Alessandro de cinco anos e Luca de três, Giangio, Giangiacomo, o filho de Nicoletta, também tem três. Primos gêmeos, costumava dizer. E foi..., é, ..., será ainda um avô maravilhoso. E foi também um bom pai. E..., sou um bom marido? Paola ergueu os olhos para o céu: ainda estamos aqui, não? Digamos que em trinta anos de vida há altos e baixos. O senhor sempre foi considerado bonitão... Esta manhã, ontem, faz dez anos, vi uma cara horrenda no espelho. Com tudo o que lhe aconteceu, é o mínimo. Mas foi, ainda é um homem bonito, tem um sorriso irresistível e algumas não resistiram. Nem o senhor, que dizia sempre que se pode resistir a tudo menos às tentações. Peço desculpas. Veja só, como os que lançavam mísseis inteligentes sobre Bagdad e depois se desculpavam quando morriam alguns civis. Mísseis em Bagdad? Não está nas MU e urna noites.
Houve uma guerra, a Guerra do Golfo, agora já acabou, ou não, talvez. O Iraque invadiu o Kuwait, os estados ocidentais intervieram. Não lembra de nada? O médico disse que a memória episódica, que parece que entrou em tilt, é ligada às emoções. Talvez os mísseis sobre Bagdad tenham sido uma coisa que me emocionou. E como! O senhor sempre foi um pacifista convicto e essa guerra o deixou em crise. Quase duzentos anos atrás, Maine de Biran distinguia três tipos de memória, ideias, sensações e hábitos. O senhor lembra de ideias e hábitos, mas não de sensações, que no entanto são as coisas mais suas. Como é que sabe de todas essas coisas? Sou psicóloga de profissão. Mas espere um momento: você acabou de dizer que a sua memória episódica deu tilt. Por que usou essa expressão? É assim que se diz». In Umberto Eco, A Misteriosa Chama da Rainha Loana, tradução de Eliana Aguiar, 2004, Editora Record, 2005, ISBN 978-850-107-143-9.

Cortesia de Difel/ERecord/JDACT