segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Rei. Dama. Valete. Vladimir Nabokov. «E embora a essa altura os campos cultivados desde muito se houvessem estendido na sua colcha de retalhos, vistos pela janela da carruagem…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«O imenso ponteiro negro continua parado, mas está prestes a fazer seu gesto, aquele de um por minuto; esse solavanco jovial porá todo um mundo em movimento. O quadrante se voltará vagarosamente para outro lado, cheio de desalento, desdém e tédio, assim como as colunas de ferro começarão, uma a uma, a passar por ali, levando a abóbada da estação como afáveis telamões; a plataforma começará a se movimentar, levando em jornada desconhecida as pontas de cigarro, passagens sem valor, salpicos de luz solar e de cuspe; um carrinho de bagagens passará por ali, as rodas imóveis; será acompanhado por banca de jornais encoberta por sedutoras capas de revistas, fotografias de belezas despidas e aperoladas e pessoas, pessoas e mais pessoas na plataforma que se move, elas mesmas movimentando as bebedeiras, mas ainda assim paradas e em pé, seguindo à frente e ao mesmo tempo recuando, como em sonho agoniante, cheio de esforço e náusea incríveis, uma fraqueza algodoada nas panturrilhas nos acometerá, fazendo-nos quase cair de borco. Havia mais mulheres do que homens, como sempre acontece nas despedidas. A irmã de Franz, com a palidez das horas matinais nas faces magras e um odor desagradável, de estômago vazio, coberta por capa enxadrezada que com certeza ninguém veria numa moça de cidade; e a mãe dele, mulher pequenina e redonda, toda em castanho como um monge pequenino e compacto. É notar que os lenços começam a tremular, drapejar, acenar. E sucedeu não apenas que eles se afastassem, deslizantes, aqueles dois sorrisos conhecidos; não apenas a estação partiu, levando consigo a banca de jornais, o carrinho de bagagens e o vendedor de sanduíches e frutas, com aqueles morangos vermelhos e luzidios, tão bonitos, gordos, bem criados, claramente implorando que os mordessem, todos os aquénios proclamando a sua afinidade com as papilas de nossa língua, mas, ai, sumidos agora; não apenas tudo isso ficou para trás, todo o velho burgo na sua bruma matutina e outonal rósea também se movia: o grande Herzog de pedras na praça, a catedral escura, os letreiros das lojas, chapelaria, o peixe, a bacia de cobre de um barbeiro. Não havia agora como fazer parar o mundo. As casas desfilam em grande estilo, as cortinas drapejam nas janelas abertas de sua casa, os soalhos estalam um pouco, as paredes estalam também, sua mãe e sua irmã estão tomando o café matinal a goles rápidos, os móveis estremecem com os solavancos mais rápidos, e com rapidez cada vez maior, de modo sempre mais misterioso, viajam as casas, catedral, praça, as ruas secundárias. E embora a essa altura os campos cultivados desde muito se houvessem estendido na sua colcha de retalhos, vistos pela janela da carruagem, Franz continuava sentindo nos ossos o distanciamento da cidadezinha onde vivera por vinte anos. Além de Franz, o compartimento de terceira e bancos de madeira continha duas velhas senhoras em vestido de veludinho; uma mulher gorducha e inevitavelmente corada, com a inevitável cesta de ovos no regaço; e uma jovem loura em short escuro, rija e corada, parecidíssima à mochila de Franz, que estava muito estofada e parecia ter sido talhada em pedra amarela: ele a sacudira com energia, colocando-a na prateleira de cima. O assento à porta e em frente a Franz era ocupado por revista com fotografia de uma jovem arrebatadora; e à janela no corredor, de costas para o compartimento, encontrava-se um homem espadaúdo, de sobretudo negro. O comboio seguia agora com rapidez. Franz, de repente, levou a mão à ilharga, perpassado pelo pensamento de que perdera a carteira de dinheiro, cujo conteúdo era de tanto valor: o pequeno e firme bilhete de passagem, o cartão de visitas de um desconhecido, contendo endereço precioso, e todo um mês inviolado de vida humana, em Reichsmarks. A carteira estava ali, logo comprovou, firme e cálida. As velhas senhoras começaram a se mexer e farfalhar, desembrulhando sanduíches. O homem no corredor voltou-se e, com leve inclinação à frente, recuando meio passo, e depois vencendo a inclinação do chão, entrou no compartimento. A maior parte do nariz desaparecera, ou nunca crescera. Ao que restava de sua ponte a pele pálida e apergaminhada se prendia com justeza nauseante; as narinas haviam perdido toda a noção de decência e defrontavam o espectador perturbado como dois buracos repentinos, negros e assimétricos; as faces e a testa exibiam uma variedade geográfica de tonalidades, amarelado, róseo e muito lustrosas. De quem teria herdado tal máscara? E se não fosse isto, que enfermidade, que explosão, que ácido, o desfigurara? Não tinha quase lábios; a ausência de pestanas conferia a seus olhos azuis uma expressão de sobressalto. E, no entanto, vestia-se com elegância, estava bem cuidado e tinha boa compleição. Usava casaco trespassado sob o sobretudo grosso, seus cabelos eram lisos como os de uma peruca. Puxou os joelhos das calças para cima ao sentar-se com movimento calmo, as mãos em luvas cinzentas abriram a revista que ele deixara no banco.
O estremecimento que passara entre as omoplatas de Franz centralizava-se agora em sensação estranha na boca. A língua lhe parecia repulsivamente viva; o palato asquerosamente húmido. A recordação abriu sua galeria de obras de cera e ele sabia, sabia que ali, algures a um canto, uma câmara de horrores o esperava. Lembrou-se do cachorro que vomitara na entrada do açougue. Lembrou-se de uma criança, simples pequerrucho, que, dobrando-se com a dificuldade de sua idade, havia laboriosamente apanhado e levado aos lábios uma coisa imunda que se parecia a uma chupeta. Lembrou-se do velho com tosse no bonde, que lançara um grumo de muco na mão do condutor. Eram imagens que Franz geralmente mantinha longe de si, mas que não paravam de enxamear de volta, contra o pano de fundo de sua vida, recebendo com espasmo histérico qualquer impressão nova que se lhes assemelhasse. Após um choque desse tipo naqueles dias ainda recentes, lançava-se ao leito e procurava combater o acesso de náusea. Suas recordações da escola pareciam estar-se sempre desviando de contatos possíveis e impossíveis com a pele escorregadia, suja e sardenta de algum colega que instava para participar em algum brinquedo ou aflito por transmitir-lhe algum segredo escarlate. O homem folheava a revista, e a combinação de seu semblante e a capa sedutora mostrava-se insuportavelmente grotesca. A mulher corada como gema de ovo sentava-se ao lado do monstro e seu ombro adormecido tocava nele. A mochila da jovem esfregava-se na mala negra, luzidia e coberta de etiquetas, pertencente a ele». In Vladimir Nabokov, Rei. Dama. Valete, 1928, Relógio D’Água, 2012, ISBN 978-989-641-314-9.

Cortesia de Relógio D’Água/JDACT