sábado, 28 de janeiro de 2017

Recensão. Maria Ângela Beirante. Ao serviço da República e do Bem Comum: os Vinte e Quatro dos Mesteres de Évora, paradigma dos Vinte e Quatro da Covilhã (1535). António M. Costa. «Esta extraordinária expansão nos alvores da modernidade deveu-se em boa medida, segundo este estudo, ao crescimento da já importante comunidade judaica local»

Cortesia de wikipedia

«(…) Já no segundo capítulo do livro somos transportados para a Covilhã medieval, acerca da qual Maria Ângela Beirante começa por traçar, com recurso a múltiplos documentos e estudos conhecidos, um interessante enquadramento histórico com início no período da Reconquista, no século XII. A autora estabelece desde cedo um paralelismo com a cidade de Évora, cujo foral servira de modelo ao primeiro da vila beirã, outorgado por Sancho I em 1186, tendo em conta uma idêntica realidade económico-social, então relacionada com a transumância. Dotada de um vasto termo, e animada em boa parte pelo comércio fronteiriço praticado nas suas feiras, a Covilhã é-nos apresentada como uma comunidade em franca consolidação até aos finais da Idade Média, evolução essa corroborada pelos estudos acerca das suas estruturas defensivas e religiosas, além das investigações de natureza institucional. Mas, como explica Maria Ângela Beirante, a notoriedade alcançada no século XV pela vila beirã, onde a coroa, a avaliar pelas inquirições de 1395, era grande proprietária, fez com que se tornasse objecto de sucessivas doações a grandes casas senhoriais, determinando o seu futuro: após a conquista de Ceuta de 1415, a Covilhã passou a integrar o senhorio do infante Henrique, prosseguindo junto da casa de Viseu até à decapitação do duque Diogo, em 1483, transitando para o património de Manuel I, ainda duque de Beja.
Todo este processo de consolidação da vila beirã baixo-medieval, nas palavras da autora, teve como motor os mesteirais. Apesar da escassez de fontes, foi possível obter relativamente ao período balizado entre os séculos XIII e XV, uma vez mais, com base quer nas referências directas da documentação, quer nos indícios dos topónimos, uma pequena amostragem de quase três dezenas de homens dos mesteres, a qual nos sugere um predomínio dos profissionais das peles e do couro (com oito mesteirais identificados, decerto relacionados com a economia ganadeira e pastoril da geografia serrana), seguidos pelos mercadores (seis), pelos mesteirais da alimentação (seis) e, por fim, pelos trabalhadores dos metais (três) e do barro (três). Seria, porém, entre os finais de Quatrocentos e as primeiras décadas da centúria seguinte que a Covilhã acusaria uma expansão social e económico vertiginosa, conforme atesta a autora ao estabelecer nexos entre a inquirição de Manuel I de 1496, o foral manuelino de 1510 e o numeramento de João III de 1527. Na mira dos indicadores fiscais e demográficos daquelas fontes somos levados a constatar dados impressionantes como, por exemplo, os 223 256 reais recolhidos ao nível dos direitos régios naquela vila nos finais do século XV, colocando-a no segundo lugar de toda a Beira, à frente da Guarda e de Castelo Branco; ou os 3.500 habitantes urbanos e os 12.964 moradores rurais que residiam no concelho no início do segundo quartel de Quinhentos, fruto de um crescimento populacional de 71 % em trinta e um anos, que convertia a Covilhã no município no mais povoado de toda a comarca.
Esta extraordinária expansão nos alvores da modernidade deveu-se em boa medida, segundo este estudo, ao crescimento da já importante comunidade judaica local, num primeiro momento, após a expulsão castelhana de 1492, acabando os seus membros por se baptizarem e adoptarem nomes cristãos na Covilhã, na sequência da conversão forçada das minorias em Portugal em 1497. À situação fronteiriça, a vila aliava condições comerciais atractivas como a organização de conhecidas feiras e a isenção de portagens para os seus moradores por todo o reino, o que, na interpretação da autora, decerto terá convencido os judeus, entretanto cristãos-novos, que ali assumiriam um papel relevante no desenvolvimento dos mesteres da área do têxtil, em particular. Só tendo em conta esta realidade da vila, populosa e pujante, se percebe o alcance da sua doação ao infante Luís por seu irmão João III, justamente em 1527, num claro reconhecimento pelo papel político e militar ao serviço do reino daquele que ficou conhecido, nas artes e nas ciências, como um verdadeiro príncipe da Renascença.
Por fim, o terceiro capítulo do livro conduz-nos à observação do regimento dos Vinte e Quatro de Évora, que em Janeiro de 1535 os mesteirais covilhanenses solicitam a Luís por modelo a instituir na vila beirã, na esperança de obterem um reconhecimento político condizente com o seu protagonismo económico. Obtido o assentimento do infante, como atesta o alvará de 30 do mesmo mês, aqueles estatutos vinham confirmar, no dizer de Maria Ângela Beirante, a familiaridade de foros e costumes entre as duas localidades, a par da sensibilidade e o pragmatismo de Luís em relação à coisa pública, por um lado, e da preferência da forma de organização dos mesteres de Évora sobre outras vilas e cidades pelos profissionais covilhanenses, por outro lado. É precisamente para melhor compreensão do decalque do Regimento dos Vinte e Quatro dos Mesteres da cidade alentejana para a Covilhã, com todos as liberdades e garantias que significava, que a autora trata separadamente o regimento, no contexto de Évora, para depois abordar a instituição do mesmo na vila beirã e a eleição dos primeiros Vinte e Quatro». In António Martins Costa, Recensão: Maria Ângela Beirante. Ao serviço da República e do Bem Comum: os Vinte e Quatro dos Mesteres de Évora, paradigma dos Vinte e Quatro da Covilhã (1535), Lisboa, Centro de Estudos Históricos, 2014, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, Centro de História da Sociedade e da Cultura, IEM, Revista Medievalista, Nº 20, Julho-Dezembro 2016, ISSN 1646-740X.

Cortesia de IEM/FCSH/NOVA/FCT/JDACT