terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Blasfémia. Douglas Preston. «Os meus cálculos poderão estar errados. Os teus cálculos nunca estão errados. Hazelius sorriu e voltou-se para Dolby. O que é que tu achas? Ela está pronta?»

jdact

Julho
«Ken Dolby encontrava-se diante da sua estação de trabalho, acariciando com os dedos macios e refinados os comandos de Isabella. Esperou, saboreando o momento, e, em seguida, destrancou uma caixa no painel e fez descer uma pequena alavanca vermelha. Não houve qualquer murmúrio, qualquer som, nada que indicasse que o instrumento científico mais caro do planeta havia sido ligado. Excepção feita ao facto de, a trezentos quilómetros de distância, as luzes de Las Vegas terem diminuído ligeiramente de intensidade. À medida que Isabella aquecia, Dolby começou a sentir a sua subtil vibração atravessar o chão. Pensava na máquina como se de uma mulher se tratasse, e nos seus momentos mais fantasiosos chegara mesmo a imaginar a sua aparência, alta e esguia, com costas musculadas, negra como a noite do deserto, coberta de gotas de suor. Isabella. Não havia partilhado estes sentimentos com ninguém, era desnecessário atrair o escárnio. Para o resto dos cientistas envolvidos no projecto, Isabella era uma coisa, uma máquina morta construída para um propósito específico. Mas Dolby sempre sentira uma profunda afeição pelas máquinas que havia criado, desde a altura em que tinha dez anos e construíra o seu primeiro rádio a partir de um kit. Fred. Era esse o nome do rádio. E, quando pensava em Fred, via um branco gordo com cabelo cor de cenoura. O primeiro computador por ele construído fora Betty, que, na sua cabeça, tinha o aspecto de uma secretária expedita e eficiente. Não era capaz de explicar o motivo pelo qual as suas máquinas assumiam aquelas personalidades, simplesmente acontecia. E agora isto, o acelerador de partículas mais poderoso do mundo... Isabella.
Como é que vai isso?, perguntou Hazelius, o líder da equipa, aproximando-se e colocando-lhe uma mão afectuosa sobre o seu ombro. A ronronar como um gato, disse Dolby. Ainda bem. Hazelius endireitou-se e falou à equipa. Reúnam-se, tenho um anúncio a fazer. O silêncio instalou-se no momento em que os membros da equipa se endireitaram nas suas estações de trabalho e se puseram à espera. Hazelius atravessou a pequena sala em passada larga e posicionou-se diante do maior dos ecrãs de plasma. Pequeno, franzino, elegante e inquieto como uma doninha enjaulada, passeou-se diante do monitor por instantes, antes de se voltar para eles com um sorriso brilhante. A presença carismática daquele homem nunca deixara de provocar espanto em Dolby. Meus caros amigos, começou, percorrendo o grupo com os seus olhos azul-turquesa, corre o ano de 1492. Estamos na proa do Santa María, a contemplar o horizonte do mar, momentos antes de a linha costeira do Novo Mundo se tornar visível. Hoje é o dia em que navegaremos sobre aquele horizonte desconhecido e desembarcaremos nas margens do nosso próprio Novo Mundo. Fez descer o braço até ao interior do saco Chapman que trazia sempre consigo e sacou de uma garrafa de Veuve Clicquot. Ergueu-a como a um troféu, de olhos cintilantes, e pousou-a com estrondo sobre a mesa. Isto é para mais logo à noite, quando desembarcarmos na praia. Porque esta noite levamos a Isabella à potência máxima de cem por cento. O anúncio foi recebido com silêncio. Finalmente, Kate Mercer, a subdirectora do projecto, falou. Então e o plano de fazer três ensaios a noventa e cinco por cento? Hazelius retribuiu-lhe o olhar com um sorriso. Eu estou impaciente. Tu não?
Mercer puxou para trás o seu brilhante cabelo negro. E se atingirmos uma ressonância desconhecida ou gerarmos um micro buraco negro? Os teus próprios cálculos mostram que a probabilidade de esse problema em específico acontecer é de um para um trilião. Os meus cálculos poderão estar errados. Os teus cálculos nunca estão errados. Hazelius sorriu e voltou-se para Dolby. O que é que tu achas? Ela está pronta? Mais do que pronta. Hazelius afastou as mãos. Então? Todos se puseram a olhar uns para os outros. Deveriam eles arriscar? Volkonsky, o programador russo, subitamente quebrou o gelo. Sim, irmos a isso! Cumprimentou, com um dá cá mais cinco, um Hazelius inquietado, e depois todos começaram a dar palmadinhas nas costas uns dos outros, a dar apertos de mão, e a abraçar-se, à semelhança de uma equipa de basquetebol antes de um jogo.
Cinco horas e outros tantos cafés maus depois, Dolby encontrava-se diante do enorme ecrã de painel plano. Ainda estava escuro, os feixes de protões matéria-antimatéria não haviam interagido. Demorava uma eternidade ligar a máquina e arrefecer os magnetos supercondutores de Isabella de modo a conduzir as elevadíssimas correntes que eram necessárias. Depois, era uma questão de aumentar a luminosidade dos feixes através de incrementos de cinco por cento, focar e colimar os feixes, verificar os magnetos supercondutores e correr uma série de programas de ensaio antes de aumentar para os cinco por cento seguintes. Potência nos noventa por cento, entoou Dolby. Diabo, disse Volkonsky algures atrás dele, desferindo na máquina de café Sunbeam um golpe que a fez retinir como o Homem de Lata. Já vazia! Dolby reprimiu um sorriso. Ao longo das duas semanas que haviam passado no alto da mesa, Volkonsky revelara-se um finório, um desmazelado e sarnento exemplar de eurotrash (literalmente euro-lixo) com cabelo comprido e oleoso, t-shirts rasgadas, e um pequeno tufo púbico agarrado ao queixo. Parecia-se mais com um drogado do que com um brilhante engenheiro de software. Mas, bem vistas as coisas, muitos deles eram assim. Mais um tiquetaque calculado do relógio. Feixes alinhados e focados, disse Rae Chen. Luminosidade catorze TeV. Isabella trabalhar perfeição, disse Volkonsky. Os meus sistemas estão todos operacionais, disse Cecchini, o físico de partículas. Segurança, Sr. Wardlaw? O oficial superior de informações, Wardlaw falou a partir da sua estação de segurança. Apenas catos e coiotes, sr. Hazelius. Muito bem, disse Hazelius. É chegada a altura. Pausou de forma dramática. Ken? Faz os feixes colidir». In Douglas Preston, Blasfémia, 2007, Edições Saída de Emergência, 2010, ISBN 978-989-637-201-9.

Cortesia de SEmergência/JDACT