quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

A Terra Toda. José Manuel Saraiva. «É verdade que tudo isto se nos afigurava uma competição de adolescentes apaixonados, mas nós gostávamos de ser assim»

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«(…) Eu nunca soube, embora tenha desconfiado, os motivos que deram origem a este diálogo, assim tão breve, tão doloroso, apenas me apercebi, como se tudo naquela hora se me revelasse claro e nítido, de que a minha mãe perdera nesse dia, e em definitivo, a sua batalha contra as mentiras do meu pai. E, então prometi a mim mesmo, tinha quinze ou dezasseis anos, que a partir daquele momento também eu haveria de ser exigente como a triste Ofélia, e de me esforçar para assumir sempre, sem receios ou evasivas, a verdade como um dos lemas da minha vida. E que nunca haveria de mentir a uma pessoa que amasse. Pode agora perguntar-me se realmente nunca menti nestes anos todos. Se quiser saber, dir-lhe-ei que sim, sem hesitações; mas também lhe direi que nunca pratiquei a mentira como forma de ofensa moral contra os outros ou de fuga às minhas responsabilidades e aos meus acidentais desvarios. Por isso me sinto hoje um homem de consciência limpa e sem remorsos. Bem, noto que estou outra vez a dispersar-me. Já nem sequer me lembro onde fiquei... Ah, sim, ia dizendo que quando iniciei a relação com a Sara, julgo que ainda não lhe tinha revelado o nome dela, pois não?..., propus-lhe logo nas primeiras conversas que nunca e em nenhuma circunstância deixássemos de assumir e amar a verdade, como verdade eterna. E ela, recordo-me perfeitamente das suas palavras, concordou, emocionada. Aliás, foi até mais assertiva do que eu. Lembro-me do que então disse; é como se estivesse a ouvi-la neste momento: esse problema nem se coloca, meu querido, porque jamais conseguiria viver outra relação que não tivesse como suporte a raiz da verdade. Odeio a mentira, sabes? Odeio a falsidade. Infelizmente já fui vítima delas, num passado recente, e por isso não gostaria de repetir a dose. Quero estar contigo como nunca estive com ninguém. Inteira, total. Santo Deus, como se enganou, e me enganou!
Não se importa que fume mais um cigarro, doutora?... Obrigado! Prometo que lhe vou trazer na próxima semana uma vela grande, daquelas perfumadas que ajudam a aliviar o ambiente dos espaços fechados. Juro que não me esquecerei disso… Estava pois a contar-lhe que nos primeiros três anos de convivência tudo correu bem entre nós. Ao princípio, isto é, durante mais ou menos ano e meio, eu passava a maior parte do tempo em casa, a trabalhar num guião que me fora encomendado por uma produtora de cinema. Trabalhava imenso por causa dos prazos, mas nem assim negligenciava a mulher que tinha a meu lado, que amava profundamente e por quem me sentia profundamente amado. Todas as manhãs, antes de ela sair para o emprego, ia ao quarto despedir-se de mim, com um sorriso, um gesto e uma palavra. Entalava-me a ponta do lençol entre os lábios, dava-me um beijo e dizia: até já, meu amor. Nunca dizia até logo, dizia sempre até já, assim como quem utiliza uma forma elíptica para dizer não te vás embora, que eu não demoro nada. Para ela, até logo seria muito longe, muito tempo. E repetia a saída do quarto, com um gesto de despedida: até já, meu amor. Depois gostava de me surpreender. A meio da manhã e da parte da tarde enviava-me uma ou mais mensagens de manutenção, isto é, de saudades, com arrebatadas declarações de ternura. Eu fazia o mesmo, sabe? É verdade que tudo isto se nos afigurava uma competição de adolescentes apaixonados, mas nós gostávamos de ser assim.
Portanto, e repito o que já disse, tudo parecia certo e perfeito no amor e na partilha. Em nossa casa havia fotografias espalhadas por toda a parte, sobre os móveis e nas paredes, em que aparecíamos quase sempre juntos e abraçados como aqueles jovens casais, lindíssimos, que todos os dias vemos nos prospectos publicitários. Tínhamos igualmente à vista muitas e pequenas recordações das cidades por onde havíamos passado nas férias ou aos fins-de-semana. E também jarras cheias de flores que a Sara comprava numa florista por baixo da nossa casa, todas as semanas. Até que um dia deixou de as comprar. E, como não percebi de imediato se aquilo era um sinal de aviso ou de cansaço, passei eu a comprar os arranjos, quase sempre rosas vermelhas e crisântemos brancos, porque eram as flores de que ela mais gostava. Porém, depressa dei conta que já não atribuía qualquer importância a esse pormenor tão singelo. Não dizia nada; não fazia comentários. Haver ou não flores em casa era-lhe indiferente». In José Manuel Saraiva, A Terra Toda, Porto Editora, Porto, 2011, ISBN 978-972-004-327-6.

Cortesia de PEditora/JDACT