sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

A Monstrificação dos Irlandeses na Imaginação Geográfica de Giraldus Cambrensis. Raimundo Sousa. «A operacionalidade das práticas representacionais na construção da realidade se evidencia na noção de espaço…»

Cortesia de wikipedia

«Monstra sane dicta perhibent a monstrando, quod aliquid significando, demonstrent; et ostenta ab obstendendo; et portenta a portendendo, id est praeostendendo; et prodigia, quod porro dicent, id est, futura praedicant» In Augustinus Hipponensis, De Civitate Dei

«O relacionamento entre saber e poder, propalado por Francis Bacon e recodificado por Michel Foucault, exprime-se com propriedade em processos linguístico-discursivos como a representação, aqui compreendida, sob um prisma construcionista (há, grosso modo, três abordagens concernentes à significação pela linguagem: a reflexiva, a intencional e a construcionista; a primeira pressupõe transparência entre signos e coisas, cabendo à linguagem actuar meramente como um espelho reflector do real; a segunda, por sua vez, reduz a representação às intenções do autor, tomando-o como detentor único de um significado restrito às suas pretensões de significação, e ignora a natureza interactiva da linguagem, desconsiderando que a construção de sentidos depende de convenções linguísticas e códigos partilhados; já a terceira, debitária do redimensionamento do conceito de linguagem pela virada linguística, reconhece o carácter colectivo dos processos linguísticos, assumindo que os significados são constituídos na e pela linguagem, e não confunde o mundo material com as práticas e os processos simbólicos por que esta opera nem nega a existência deste, pois os significados não são forjados pelo mundo material, mas, antes, pelos sistemas linguísticos actuantes como medium de interpretação, codificação e atribuição de sentidos a ele; portanto, essa perspectiva considera que o sentido, em vez de intrínseco à materialidade do signo, é construído conforme a função simbólica que lhe é imputada; considera, ainda, que não se reflecte o mundo ao representá-lo, mas de facto se o cria, uma vez que é precisamente a mediação dos sistemas de significação que o torna inteligível), não como codificação especular de referentes apriorísticos, mas, isto sim, como um sistema linguístico e cultural arbitrário e intrincado em relações de poder nas quais os significados são constituídos na e pela linguagem, os objectos a que estes remetem são forjados no acto mesmo de sua enunciação e as representações legitimadas estabelecem, embora nunca definitivamente, noções de identidade e diferença.
A operacionalidade das práticas representacionais na construção da realidade se evidencia na noção de espaço, que, conforme Lefebvre, constitui-se na relação tensional entre a materialidade e a imaginação, de modo que não se pode concebê-lo como dado apriorístico, mas, antes, como uma produção. Em exemplo inequívoco de como o espaço constitui um construto cultural, o crítico literário inglês William Hazlitt, em ensaio de 1821 intitulado Por que objectos distantes atraem, assumia um impedimento avant la lettre ao explicar a atractividade dos espaços remotos para o exercício da imaginação: objectos distantes agradam porque, em primeiro lugar, implicam uma ideia de espaço e magnitude e porque, não estando muito próximos de nossos olhos, nós os vestimos com as cores indistintas e arejadas de fantasia. [...] quando a paisagem desaparece da vista maçante, nós preenchemos o espaço estreito, sem visibilidade, com tons de desconhecido feitio, e tingimos a perspectiva nebulosa com esperanças, desejos e temores mais atraentes. [...] tudo quanto é colocado fora do alcance do sentido e do conhecimento, tudo o que é percebido de forma imperfeita, a fantasia acrescenta ao seu lazer. Nessa prática de significação não raro inscrita em um sistema valorativo etnocêntrico, e, portanto, calcada no enquadramento de alteridades etno-geográficas em determinados regimes de verdade que lhes atribuem significados frequentemente caros à instauração e / ou manutenção de assimetrias de poder, o contacto com uma cultura outra enseja um rito quase instantâneo, pautado na classificação desta, numa universalização narcísica de padrões evolutivos e códigos culturais, como sincrónica se análoga à nossa ou anacrónica se estranha a nossos paradigmas. Assim, a inscrição do Outro como parâmetro para a definição, simétrica ou contrastiva, de nossa própria identidade, sinaliza que, em última instância, os predicados que lhe atribuímos informam menos acerca dessa nossa exterioridade constitutiva (expressão tomada de empréstimo a Hall, para quem é apenas mediante a relação com o Outro, a relação com o que não é, com precisamente o que falta, com o que se tem chamado de sua exterioridade constitutiva, que o sentido positivo de qualquer termo, e, portanto, a sua identidade, pode ser construído) do que de nós mesmos.
Em macroesfera, essa relação projectiva atingiu expressão máxima no imperialismo que, ao se valer de um exercício textual pautado na produção sistémica de géneros os mais diversos, conferiu respectivos estatutos de identidade e alteridade aos impérios e aos seus Outros, na medida em que a universalização de paradigmas culturais etnocêntricos chancelava polarizações supostamente ontológicas que, por sua vez, legitimavam a instauração e / ou manutenção de assimetrias de poder. Como, em um regime de representação etnologocêntrico, a possibilidade de (auto-)legitimação depende da prerrogativa de (d)(escre)ver, grupos despossuídos de autoridade discursiva para legitimar sua autoetnografia são inscritos / escritos por aqueles que, situados em posição favorável nas relações de poder, fazem-no em conformidade com acepções de cultura monocentrais cuja análise tem ocupado um veio dos estudos pós-coloniais atento aos modos como o Ocidente metropolitano tem forjado discursivamente sua alteridade desde a descoberta do Novo Mundo aos neocolonialismos contemporâneos». In Raimundo Sousa, A Monstrificação dos Irlandeses na Imaginação Geográfica de Giraldus Cambrensis, UFMGeraia, FL, DLetras, Belo Horizonte, Revista Medievalista, Nº 21, Janeiro-Junho 2017, Universidade Nova de Lisboa, FCS e Humanas, FC e Tecnologia, ISSN 1646-740X.

Cortesia da RMedievalista/FCT/JDACT