segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

A Jesuíta de Lisboa. Titus Muller. «Dalila gostava de estar em Alfama, o bairro dos estivadores e das lavadeiras, das prostitutas, dos ladrões e dos jornaleiros. Desde sempre fora esta a zona da cidade onde paravam os que a sociedade…»

jdact

«(…) A menina levantou o olhar, fitando a anciã. E porque não? Passa a maior parte do tempo a dormir. Está velho e cansado, a anciã afastou do rosto uma madeixa de cabelo branco. Além disso, já não tem dentes. Quando ele boceja podes ver que lhe faltam os quatro caninos grandes. Como pode, assim matar pássaros à dentada? E ele gosta de pão? A anciã acenou afirmativamente com a cabeça. Posso fazer-lhe ume festa? Claro que sim. Com todo o cuidado, a pequenita passou a mão sobre o pelo eriçado. O gato consentiu, continuando a comer como se nada fosse. Gatinho velho e lindo, disse a menina. Como seria ser rnãe? Daria banho à menina e comprar-lhe-ia roupas bonitas. Ensinar-lhe-ia a entrançar grinaldas de flores. Todas as noites haveria de cantar com ela. No entanto, o homem que Dalila amava nada sabia a respeito dela. Sentia uma afinidade entre ambos, um sentimento que a dominava inteiramente, ao passo que ele calhara com a mulher errada. A sua irmã gémea tinha sangue-frio e era calculista, era pretensiosa, altiva e superficial. Nada tinham a ver um com o outro. Como era possível que ele amasse Leonor e não ela? Não conseguiu deixar de pensar no beijo que ele dera à sua irmã durante a sua última visita, um beijo nos lábios. Sentira um fogo a arder na barriga. Havia algo naquele mundo que não batia certo. Deus deveria estar distraído, não prestava atenção. No fim do íngreme desfiladeiro formado por aquela rua resplandecia o Tejo, um vasto tapete de água azul repleto de navios. Se ela pudesse fugir com Antero! Se conseguisse esgueirar-se para o interior do seu navio e, na companhia dele, navegar para longe da irmã! Lá fora, no mar, ele logo abriria os olhos. Iria reparar nela, Dalila, e dar-se conta do quanto andara cego. O Senhor tinha aqui algo a fazer. Tinha de ajudá-la. Através da Rua Nova dos Mercadores avançava uma interminável massa de gente, que murmurava, gritava e ria. Deixou-se mergulhar nela e virou de seguida à esquerda. De ambos os lados da rua erguiam-se barracas que se ofereciam à multidão. Alguns desses pequenos comerciantes haviam-se estabelecido nas escadas das casas. Podia-se-lhes comprar malas, cestos, adornos, tachos, facas. Outros comerciantes ainda tinham tâmaras e cerejas para oferecer. Cheirava a bacalhau assado. Sobre este espalhava-se o odor a sabão em pó. As lavadeiras, nos pátios, espalhavam-no na água das suas tinas, era o odor mais típico dos bairros mais pobres da cidade. Desde que estava apaixonada por Antero, apreciava este cheiro. Identificava-se com os pobres. Tal como ela, eles eram infelizes.
Dalila gostava de estar em Alfama, o bairro dos estivadores e das lavadeiras, das prostitutas, dos ladrões e dos jornaleiros. Desde sempre fora esta a zona da cidade onde paravam os que a sociedade colocava à margem. Viviam aqui mouros empobrecidos, aleijados, zarolhos e judeus convertidos. Lisboa assemelhava-se a um anfiteatro que descia em direcção à água. O porto era o palco. Cinco colinas rodeavam o grande vale onde se situava o centro da cidade, dispostas como se fossem as galerias de um teatro. Alfama, no entanto, situava-se mais na rectaguarda, igualmente perto do rio, porém excluída. A cidade ficava de costas viradas para ela. Só a Inquisição (maldita) é que aparecia com frequência em Alfama, onde ia à caça de judeus que se mantivessem fiéis às suas velhas práticas, que lhes eram proibidas. Sobre os degraus de uma escada, um comerciante havia exposto centenas de figuras de santos pintadas de várias cores. A maioria delas representava Santo António, o padroeiro da cidade. Cada uma das figuras do santo segurava o Menino Jesus no braço esquerdo e no direito um livro e um lírio. Ainda assim, nem todas as figuras eram iguais. Dalila segurou numas quantas individualmente e observou-as. Um Santo António lançava um olhar irado, ao passo que outro soltava uma lágrima, o terceiro tinha uma madeixa de cabelo a tapar-lhe parte do rosto, ao quarto a tinta que coloria o hábito de monge já estalara. O quinto, no entanto, que ela segurava nas mãos, agradou-lhe logo à primeira. Sorria para o Menino, que segurava no braço, e de resto estava ileso. Dalila perguntou o preço. Dois tostões. Saída do manto do comerciante, estendeu-se uma mão magra e seca. Por debaixo das pregas da capa era impossível reconhecer os traços do seu corpo. Qual a magreza do homem, ao certo? Vendia aquelas figuras e ele próprio mais não era do que uma sombra. Dou-lhe um. O homem magro olhou-a, como que a avaliá-la. Preferiria mesmo que fossem dois. Claro, o vestido de seda. Revelava que ela provinha de um meio abastado». In Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa, 2010, tradução de Paulo Rêgo, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-047-3.

Cortesia Cletras/JDACT