sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

O Senhor do Falcão. Valeria Montaldi. «Os olhos da madre abadessa fixavam os olhos brilhantes do padre; o rosto rugoso assumiu uma expressão atenta, com a boca severa apenas entreaberta»

jdact e wikipedia

Milão. 1226
«(…) Deus me acuda... Deus me acuda... Virgem Santíssima... Incapaz de articular outras palavras, a voz rouca esgotou-se-lhe num sussurro. O homem fixou ainda por um tempo o cadáver, sem conseguir, sequer, mover um único músculo. Depois, com um repentino sobressalto, de todos os tendões do seu corpo e como que atacado por um enxame de abelhas, ergueu-se e desatou a correr ao longo da margem, na direcção do ancoradouro dos barcos. Está um cadáver dentro de água! Corram, corram todos, está um morto na água! A voz regressara e saía-lhe agora com toda a força da garganta. Por um instante, o ruído quotidiano que acompanhava a vida naquele ancoradouro parou. Muitas cabeças voltaram-se na direcção daquele homem que gritava e corria: os carroceiros pararam os cavalos, os serviçais interromperam a conversa, os arrais permaneceram com os fardos das mercadorias no ar. Já sem ar, o descarregador arrastou-se pela margem, perto dos marcos de atracação que se afundavam maciços na água: enquanto tentava respirar de novo, apoiando-se ao bordo de uma barcaça encalhada, dois arrais aproximaram-se dele pedindo-lhe explicações. Sem responder, o homem limitou-se a apontar a água com o dedo: o corpo estava agora quase junto da margem, grotesco fantoche acinzentado e agora bem visível. O horror estampou-se de forma evidente no rosto dos dois interlocutores: com a boca escancarada, permaneceram imóveis fixando o cadáver que aflorava da água, boiando, à superfície, sustido pela dança macabra da corrente.
Venham, venham cá, Santo Deus, venham ver!... As vozes grosseiras dos arrais sobrepunham-se, enquanto os seus braços gesticulavam descompostos: em poucos instantes o dique esvaziou-se e a margem encheu-se de gente, que tremia de sórdida curiosidade. A pouco e pouco, o bruaá excitado foi-se calando até se esgotar completamente num silêncio atónico, quando a última onda, graciosa, depositou sobre a margem o corpo inchado e semi-nu de uma mulher. Agora imóvel, estendido sobre os seixos e ensopado de água suja, só os longos cabelos negros ondeavam, preguiçosos, na ressaca ligeira: uma camisa esfarrapada, da qual apenas restara uma manga inteira, e um par de calças de linho ensopadas de lama eram a única roupa que cobria o cadáver. O homem alto aproximou-se, parando, no entanto, quase de seguida, devido ao repugnante cheiro a morte. No rosto tumefacto, os olhos escancarados saltavam das órbitas, da boca aberta pendia a língua inchada, coberta de limo preto. Os peixes e os caranguejos tinham feito o seu trabalho: as mãos, os pés e os braços estavam, aqui e ali, roídos.
A polícia, é preciso chamar a polícia, e depois o padre... A voz do descarregador elevou-se, decidida, acima do murmúrio circunstante das pessoas fascinadas com aquele espectáculo horrendo: um dos arrais, depois de se ter persignado, virou-se e, apressadamente, saiu do dique direito à poterna, onde tinha avistado o corpo da guarda. Então, é este o medalhão de que me falou, madre? O secretário particular do arcebispo rodava entre os dedos um precioso berloque de prata: ao centro do medalhão via-se, finamente esboçado, o recorte de uma pequena torre em cuja base, circundada de uma voluta de folhas, estava gravado um G muito trabalhado, coberto de esmalte azul, delicadamente incrustado. Os olhos da madre abadessa fixavam os olhos brilhantes do padre; o rosto rugoso assumiu uma expressão atenta, com a boca severa apenas entreaberta. Se não fosse este o medalhão, não o teria mandado chamar, irmão Algiso, sussurrou a velha freira. Uma vez que ambos sabemos de que se trata, parece-me desnecessário estar para aqui a falar... Já avisou o arcebispo? O secretário anuiu e, envolvendo cuidadosamente o medalhão num pedacinho de linho, fê-lo desaparecer por debaixo da sotaina. O arcebispo já foi informado, madre: quando esta bugiganga estiver nas suas veneráveis mãos, terá o cuidado de a fazer chegar à sua legítima proprietária...
É um pouco difícil, não acha? A voz da abadessa tornara-se cortante e deixava escapar uma indignação que só com muito esforço controlava. Considerando que aquela rapariga já foi sepultada, penso que o brasão da família já não vai ser necessário! O frade empalideceu e, levantando-se rapidamente do banco, abriu a boca para contra-atacar, mas a madre abadessa antecipou-se. Basta, irmão Algiso! Não esteja para aí a dizer mentiras em cima de mentiras: já tenho bastantes anos para saber distinguir a verdade das maquinações com as quais se tenta modificá-la, e adaptada às circunstâncias. É verdade, teria sido melhor para todos se a corrente de Vettabbia tivesse arrancado também este medalhão do corpo daquela desgraçada, mas, uma vez que as coisas se passaram assim, era meu dever participar-lhe... Dominando a voz irada que baixou de tom, num sussurro, a freira continuou, fixando, decidida, o olhar do frade. O problema, e o irmão sabe-o muito bem, é que temos quase a certeza de que aquela mulher foi assassinada. Oh, não me interrompa..., acrescentou irritada, travando com um gesto da mão a resposta que estava prestes a sair da boca do seu interlocutor, deixai-me dizer a verdade! Nada do que vos estou a contar sairá destas paredes, mas, pelo menos aqui, procuremos fazer justiça àquela pobre rapariga, que em vida teve bem pouca... Claro que não ia chamar-se um médico para ver aquele golpe profundo que circundava o pescoço do cadáver: quando foi trazido aqui para o nosso mosteiro, a irmã que limpou e preparou o corpo para a sepultura mandou-me chamar à pressa, no meio de uma grande agitação. O sulco do pescoço era de tal forma profundo que o fio do medalhão se enterrara na carne, o que certamente impedira que o assassino o tivesse arrancado. Não, irmão Algiso, acrescenta secamente, prevenindo a pergunta que estava a ser preparada, não, nunca irá saber, nem o senhor nem o arcebispo, o nome da irmã que fez aquela ingrata tarefa. Não tenciono pôr em risco a vida das minhas protegidas, aqui no mosteiro! Oh, claro, se se tivesse tratado de uma mulher do povo, o facto não teria interessado a ninguém! Mas aquela incisão, aquelas iniciais... Quem não conhece a família Gisalbertini di Calepio? Quem não sabe da sua ligação estreita com a família do sobrinho do arcebispo?» In Valeria Montaldi, O Senhor do Falcão, 2003, tradução de Maria Irene Carvalho, Editorial Notícias, Editora Casa das Letras, 2005, ISBN 978-972-461-618-6.

Cortesia de EditorialNotícias/ECdasLetras/JDACT