sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Contos fantásticos do século XIX. Italo Calvino. « Mas é preciso dizer que antes mesmo de Hawthorne e Poe o fantástico na literatura dos Estados Unidos já possuía uma tradição própria e um autor clássico: Washington Irving»

jdact e wikipedia

«(…) Depois de Hoffmann, Poe foi o autor que mais teve influência sobre o fantástico europeu, e a tradução de Baudelaire devia funcionar como o manifesto de uma nova atitude do gosto literário. Entretanto, os efeitos macabros e malditos de sua obra foram recebidos mais facilmente por seus descendentes do que sua lucidez racional, que é o traço distintivo mais importante desse autor. Falei antes de sua descendência europeia porque em seu país a figura de Poe não parecia tão emblemática a ponto de ele ser identificado com um género literário específico. Ao lado dele, aliás, um pouco antes dele, estava outro grande americano, que havia levado o conto fantástico a uma intensidade extraordinária: Nathaniel Hawthorne.
Entre os autores representados nesta antologia, Hawthorne é certamente aquele que consegue ir mais fundo no campo moral e religioso, tanto no drama da consciência individual quanto na representação sem disfarces de um mundo forjado por uma religiosidade extrema como a da sociedade puritana. Muitos de seus contos são obras-primas (tanto do fantástico visionário, como o sabá de O jovem Goodman Brown, quanto do fantástico introspectivo, como em Egoísmo ou a serpente no peito), mas não todos: quando ele se afasta dos cenários americanos (como na célebre Filha de Rapaccini), a sua invenção pode resultar em efeitos previsíveis. Mas nos melhores casos as suas alegorias morais, sempre baseadas na presença indelével do pecado no coração do homem, têm uma força na visualização do drama interior que só será alcançada em nosso século, com Franz Kafka. (Há inclusive uma antecipação do Castelo kafkiano num dos melhores e mais angustiados contos de Hawthorne: My Kinsman Major Molineux).
Mas é preciso dizer que antes mesmo de Hawthorne e Poe o fantástico na literatura dos Estados Unidos já possuía uma tradição própria e um autor clássico: Washington Irving. E não nos esqueçamos de um conto emblemático como Peter Rugg, the missing man, de William Austin (1824). Uma misteriosa condenação divina compele um homem a correr numa carroça em companhia da filha, sem nunca poder parar, perseguido por um furacão através da imensa geografia do continente; uma narrativa que exprime com elementar evidência os principais pontos do nascente mito americano: potência da natureza, predestinação individual, tensão aventurosa.
Em suma, a tradição do fantástico herdada por Poe e transmitida aos seus descendentes, que são na maioria epígonos e maneiristas (ainda que exuberantes nas cores da época, como Ambrose Bierce), já estava madura. Até que, com Henry James, nos encontraremos diante de uma nova virada. Na França, o Poe tornado francês por intermédio de Baudelaire não tarda a fazer escola. O mais interessante desses seus continuadores no âmbito específico do conto é Villiers de L'Isle Adam, que em Véra nos dá uma eficaz mise-en-scène do tema do amor que continua para além da morte; além disso, A tortura com a esperança é um dos exemplos mais perfeitos de fantástico puramente mental. (Em suas antologias do fantástico, Roger Callois escolhe Véra, Borges, A tortura com a esperança, óptimas escolhas, tanto a primeira como, sobretudo, a segunda. Se proponho uma terceira narrativa, é somente para não repetir escolhas alheias.)
No final do século, é particularmente na Inglaterra que se abrem as estradas que serão percorridas pelo fantástico do nosso tempo. Na Inglaterra caracteriza-se um tipo de escritor refinado que adora travestir-se de escritor popular, operação bem realizada porque ele não o faz com condescendência, mas com diversão e empenho profissional, e isso só é possível quando se sabe que sem a técnica do ofício não há sabedoria artística que preste. R. L. Stevenson é o exemplo mais feliz dessa disposição de ânimo; mas ao lado dele devemos considerar dois casos extraordinários de genialidade inventiva e precisão artesanal: Kipling e Wells. O fantástico dos contos indianos de Kipling é exótico não no sentido estetizante e decadentista, mas na medida em que nasce do contraste entre o mundo religioso, moral e social da Índia e o mundo inglês. O sobrenatural é muito frequentemente uma presença invisível, ainda que aterrorizante, como na Marca da besta; às vezes o cenário do trabalho quotidiano, como o que aparece em Os construtores de pontes, se rompe, e as antigas divindades da mitologia hindu se revelam numa aparição visionária. Kipling também escreveu muitos contos fantásticos ambientados na Inglaterra, onde o sobrenatural é quase sempre invisível (como em They) e predomina a angústia da morte». Organização de Italo Calvino, Contos fantásticos do século XIX, O fantástico visionário e o fantástico quotidiano, 1983, vários tradutores, Companhia das Letras, São Paulo, 2004, ISBN 978-853-590-502-1.

Cortesia da CdasLetras/JDACT