segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

A Jangada de Pedra. José Saramago. «A mulher, sem dar muita atenção à informação, respondeu, Vê lá tu, e ele achou que era de seguir o conselho, embora não tivesse sido essa a intenção, a frase da senhora, mais interjeição do que recomendação abreviada»

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«A coragem que vence o medo tem mais elementos de grandeza que aquela que o não tem. Uma começa interiormente; outra é puramente exterior. A última faz frente ao perigo; a primeira faz frente, antes de tudo, ao próprio temor dentro da sua alma». In Fernando Pessoa

«(…) Porém, foi um outro jornalista, aliás galego e de passagem, como a galegos acontece tantas vezes, quem lançou a pergunta que ainda faltava fazer, Para onde vai esta água. Era então o tempo em que discutiam, com ciência brusca e seca, os geólogos de ambas as partes, e a pergunta, como de criança tímida, apenas foi ouvida por quem agora a regista. Sendo a voz galega, portanto discreta e medida, abafaram-na o rapto gaulês e o rompante castelhano, mas depois outros vieram repetir o dito arrogando-se vaidades de primeiro descobridor, aos povos pequenos ninguém dá ouvidos, não é mania da perseguição, mas histórica evidência. A discussão dos sábios tornara-se quase impenetrável para entendimentos leigos, mas, ainda assim, podia-se ver que havia duas teses centrais em discussão, a dos monoglacialistas e a dos poliglacialistas, ambas irredutíveis, e não tarda inimigas, como duas religiões antitéticas, monoteísta uma, politeísta outra. Algumas declarações chegavam a parecer interessantes, como aquela de as deformações, certas deformações, poderem ser devidas, quer a uma elevação tectónica quer a uma compensação isostática da erosão. Tanto mais, acrescentava-se, que o exame das formas actuais da cordilheira permite afirmar que ela não é antiga, geologicamente falando, claro.
Tudo isto, provavelmente, teria que ver com a fenda. Afinal, uma montanha sujeita a tais jogos de tracção e braço-de-ferro, não admira que lá venha o dia em que se veja obrigada a ceder, a partir-se, a desmoronar-se, ou, como no caso vertente, a abrir racha. Não foi esse o caso da laje grande, inerte sobre os Montes Alberes, mas a essa nunca a viram geólogos, estava longe, num desolado ermo, ninguém se aproximou dela, o cão Ardent foi atrás do coelho e não voltou. Passados dois dias, estavam os membros da comissão de limites fronteiriços em trabalho de campo, com os teodolitos medindo, com as tábuas conferindo, com as calculadoras calculando, e a tudo isto confrontando com as fotografias aéreas, os franceses pouco satisfeitos porque já eram mínimas as dúvidas de que a fenda fosse espanhola, como o jornalista Miguel pioneiramente defendera, quando houve súbita notícia duma nova fractura. Da tranquila Orbaiceta não voltou a falar-se, nem do cortado rio Irati, sic transit gloria mundi e de Navarra. Em revoada, os homens da informação, alguns dos quais eram mulheres, foram enxamear os Pirenéus Orientais, que era a região crítica, felizmente dotada de melhores meios de acesso, tantos e tão excelentes que em poucas horas ali se reuniu o poder do mundo, com gente que até de Toulouse e Barcelona viera. As auto-estradas ficaram entupidas, quando as polícias de um lado e do outro quiseram desviar os fluxos de trânsito era tarde de mais, quilómetros e quilómetros de automóveis, o caos mecânico, depois foi preciso aplicar providências drásticas, fazer voltar toda a gente para trás pela outra faixa de rodagem e para isso destruindo as vedações, enchendo os fossos, um inferno, razão tiveram-na os gregos quando nesta região o colocaram. Valeram na emergência os helicópteros, esses artefactos voadores ou passarolas capazes de pousar em quase todos os lugares, e, quando de todo impossível, procedem à imitação do colibri, aproximam-se quase a tocar a flor, os passageiros nem precisam de escada, um saltinho e basta, entram logo na corola, entre estames e pistilos, aspirando os aromas, quantas vezes de napalm e carne queimada. Largam a correr, baixando a cabeça, e vão ver o que aconteceu, alguns destes chegam directamente do Irati, já com experiência tectónica, mas não esta.
A fenda corta a estrada. toda a grande área de estacionamento, e prolonga-se. adelgaçando-se para os dois lados. Na direcção do vale. onde se perde, serpenteando pela encosta do monte acima, até desaparecer nos matos. Estamos no exacto e preciso lugar da fronteira, a autêntica, a linha de separação, neste limbo sem pátria entre os postos das duas polícias, la aduana e la douane, la bandera e le drapeau. A uma distância prudente, porque se admite a probabilidade de desmoronamentos dos bordos da terrestre ferida. Autoridades e técnicos trocam frases de nulo sentido e eficácia nula, não se pode chamar diálogo a tal rumor de vozes, e usam altifalantes para melhor se ouvirem, enquanto outras personagens mais qualificadas, dentro dos pavilhões, falam pelo telefone, ora entre si, ora com Madrid e Paris. Mal desembarcaram, os jornalistas vão indagar como foi que isto se deu, e recolhem todos a mesma história, com algumas elaboradas variantes, que a sua própria imaginação ainda mais irá enriquecer, mas, pondo as coisas no simples, quem deu fé do acontecimento foi um automobilista que, passando quando já a noite se fechava, sentiu dar o carro um salto brusco, como se as rodas tivessem entrado e saído de um rego transversal, e foi ver o que era, capaz de haver obras de beneficiação do piso que imprudentemente se tivessem esquecido de assinalar. A racha tinha então meio palmo de largura, uns quatro metros de comprimento, se tanto. O homem, que era português, de nome Sousa, e viajava com a mulher e os sogros, voltou para o carro e disse, Até parece que já entrámos em Portugal, imagina, uma vala enorme, podia amolgar-me as jantes, partir um semieixo. Não era vala, nem era enorme, mas as palavras, assim nós as fizemos, têm muito de bom, ajudam, só porque as dizemos exageradas logo aliviam os sustos e as emoções, porquê, porque os dramatizam. A mulher, sem dar muita atenção à informação, respondeu, Vê lá tu, e ele achou que era de seguir o conselho, embora não tivesse sido essa a intenção, a frase da senhora, mais interjeição do que recomendação abreviada, era daquelas que de resposta só fazem as vezes, tornou ele a sair e foi verificar as jantes, estragos visíveis não havia, felizmente. Daí a dias, já na sua terra portuguesa, será herói, dará entrevistas à televisão, à rádio e à imprensa, Foi o primeiro a ver, senhor Sousa, relate-nos as suas impressões do terrível momento. Repetirá vezes sem conto, e sempre há-de rematar a ornamentada história com uma pergunta ansiosa e retórica, de causar arrepios e que a si próprio arrepia deliciosamente, como um êxtase, Se o buraco fosse maior, já pensou, como dizem que é agora, tínhamos caído lá dentro, sabe Deus até que fundura, e mais ou menos assim também pensara o galego quando perguntou, se estão lembrados, Para onde vai essa água». In José Saramago, A Jangada de Pedra, Editorial Caminho, 1986, 16ª Edição, Reunidos, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-210-289-6.

Cortesia de Caminho/JDACT