sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Um estranho amor. Elena Ferrante. «Tínhamos obtido rapidamente os documentos necessários, as autorizações nulas de não sei quantas autoridades competentes, verdadeiras ou inventadas, um funeral de primeira classe e, o mais difícil, um lugar no cemitério»

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(…) Observei demoradamente, com desagrado, as suas pernas esverdeadas, extraordinariamente jovens para uma mulher de sessenta e três anos. Notei com o mesmo desagrado que o soutien era muito diferente dos já fora de moda que costumava usar. As copas eram feitas de renda delicadamente trabalhada e deixavam ver os mamilos. Eram ligadas uma à outra por três Vbordados, marca de um estabelecimento napolitano de dispendiosa roupa interior para senhora, o das irmãs Vossi. Quando mo restituíram, juntamente com os brincos e os anéis, cheirei-o demoradamente. Tinha o odor irritante do tecido novo. Durante o funeral surpreendi-me a pensar que finalmente já não tinha a obrigação de me preocupar por causa dela. Notei de imediato um fluxo tépido e senti-me molhada entre as pernas. Estava à cabeça de um longo cortejo de parentes, amigos, conhecidos. As minhas duas irmãs apertavam-se a mim, uma de cada lado. Segurava uma por um braço, porque receava que desmaiasse. A outra agarrava-se a mim como se os olhos demasiado inchados a impedissem de ver. Aquela descarga involuntária do corpo assustou-me como se fosse a ameaça de uma punição. Não tinha conseguido verter uma única lágrima: não tinham brotado ou talvez não tivesse querido que brotassem. Além disso, fora a única a dizer algumas palavras para justificar o meu pai, que não mandara flores e não viera ao funeral. As minhas irmãs não tinham escondido a sua desaprovação e agora pareciam empenhadas em demonstrar publicamente que tinham lágrimas suficientes para chorar também as que nem eu nem o meu pai estávamos a verter. Sentia-me sob acusação. Quando o cortejo foi acompanhado durante um bocado por um homem de cor que carregava aos ombros algumas telas montadas numa armação, a primeira das quais (a que ficava visível sobre as suas costas) representava toscamente uma cigana seminua, esperei que nem elas nem os parentes dessem conta. O autor daqueles quadros era o meu pai. Se calhar estava a trabalhar nos seus borrões naquele momento.
Tinha feito e continuava a fazer cópias sobre cópias daquela cigana odiosa, vendida pelas ruas e nas feiras da província há dezenas de anos, satisfazendo por poucas liras, como sempre, os pedidos de horríveis quadrinhos para salas pequeno-burguesas. A ironia das linhas que conjugam horas para encontros, para separações, para velhos rancores, mandara ao funeral da minha mãe não ele, mas aquela sua pintura elementar, detestada por nós, suas filhas, mais do que detestávamos o seu autor. Sentia-me cansada de tudo. Desde que tinha chegado à cidade nunca mais parara. Durante alguns dias acompanhara o meu tio Filippo, o irmão da minha mãe, nas voltas pelo caos das repartições, entre pequenos mediadores capazes de apressar os tramites burocráticos dos processos ou experimentando nós mesmos, depois de longas filas nos balcões, a disponibilidade dos empregados para ultrapassar obstáculos intransponíveis em troca de avultadas gorjetas. Por vezes o meu tio tinha conseguido obter alguns resultados ostentando a manga vazia do casaco. Perdera o braço direito já em idade avançada, aos cinquenta e seis anos, trabalhando no torno de uma oficina da periferia, e desde então usava aquela sua invalidez ora para pedir favores, ora para augurar a quem lhos negava a mesma desgraça. Mas conseguira os melhores resultados desembolsando muito dinheiro que não era devido. Assim, tínhamos obtido rapidamente os documentos necessários, as autorizações nulas de não sei quantas autoridades competentes, verdadeiras ou inventadas, um funeral de primeira classe e, o mais difícil, um lugar no cemitério.
Entretanto, o corpo morto de Amalia, minha mãe, retalhado pela autópsia, tinha-se tornado cada vez mais pesado à força de ser arrastado com nome e sobrenome, data de nascimento e data de morte, perante empregados ora grosseiros, ora simpáticos. Sentia a urgência de me desembaraçar dele e, no entanto, ainda não suficientemente extenuada, quisera levar ao ombro o caixão. Tinham-mo permitido depois de muita resistência: as mulheres não levam caixões ao ombro. Fora uma péssima ideia. Como aqueles que transportavam o féretro simultaneamente comigo (um primo e os meus dois cunhados) eram mais altos, receara durante todo o percurso que a madeira penetrasse entre a minha clavícula e o pescoço, junto com o corpo que continha. Quando o caixão foi depositado no carro e este se pôs em movimento, tinham bastado poucos passos e um alívio culposo para que a tensão se precipitasse naquele fluxo secreto do ventre». In Elena Ferrante, Um Estranho Amor, 1995, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2005, ISBN 972-202-879-0.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT