segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Representações da Saúde e da Doença em Eça de Queirós. Ana Luísa Vilela. «Em 1871, o realismo significaria então para Eça de Queirós a apologia da razão e da luz, o fascínio pela ciência e pela sua potencialidade reveladora. E não escapa à inevitável isotopia da visão: na sua conferência no Casino Lisbonense»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Considera-se geralmente que a descrição não idealizada do corpo humano, da sua patologia e da sua fisiologia, do pormenor físico ou da perturbação psíquica, constitui uma conquista da literatura do século XIX e, em particular, das estéticas realistas. A promoção romanesca do corpo – a corporização e a sexualização das personagens – integra a instalação, na segunda metade do século XIX, da temática física no romance, e a consequente criação de uma poética romanesca do corpo. Segundo Peter Brooks, o realismo corresponde a duas tendências simétricas e complementares: a da semiotização do corpo e a da somatização da narrativa. Esta nova importância (dir-se-ia quase obsessiva) concedida à carnalização da personagem aparece associada a uma visão determinista e materialista da individualidade; e irá interagir com a própria modelização romanesca, implicando-lhe uma generalizada renovação e refiguração. Na verdade, o romance realista constitui, em muitos sentidos, uma totalidade orgânica, sistemática e coerente.
Na ficção de Eça de Queirós, quase sempre os protagonistas se caracterizam como detentores de doença ou de saúde (às vezes apenas mental). De facto, a saúde e a doença são traços relevantes na personagem queirosiana. Desde Prosas Bárbaras, os dois termos constituem referências axiais do autor, usadas no campo estético-literário. Em carta a Carlos Mayer, datada de 1867, Eça de Queirós divide os dois antigos bandos dos seus companheiros de Coimbra segundo a sua pertença aos campos da saúde ou da doença: havia nesse tempo, por um lado, os clássicos, os saudáveis; e havia, por outro, os românticos, os doentes. Os primeiros preferiam o real circunstancial, reproduzem costumes; aos segundos só interessava a alma humana universal. Eça declara-se em absoluto um romântico (tal como Ega reconhece a Carlos, n’Os Maias, em 1888) e exclama, então: qual vale mais, esta doença magnífica, ou a saúde vulgar e inútil que se goza no clima tépido que vai desde Racine até Scribe? Refere, nessa altura, que tivera uma cruz e versículos da Bíblia no seu quarto de estudante. Mas que tal decoração fora retirada pois, estando Eça constipado, um amigo defendera que o misticismo proibia o sol, o calor, os bens tépidos, a dilatação da molécula venturosa, a flanela, os melaços e que o ateísmo era para mim uma necessidade higiénica. Foi talvez isso mesmo que o realismo representou para Eça: uma necessidade higiénica, um sistema organizador, uma estrutura coerente, uma terapêutica reequilibrante e compensatória…
Em 1871, o realismo significaria então para Eça de Queirós a apologia da razão e da luz, o fascínio pela ciência e pela sua potencialidade reveladora. E não escapa à inevitável isotopia da visão: na sua conferência no Casino Lisbonense, Eça associa o realismo aos termos olhos, guia, roteiro, pintar, etc., que complementam as metáforas médicas. Assim, o escritor compartilharia com o anatomista e o fisiologista (como no romance fisiológico ou experimental de Zola), um olhar crítico, exterior, científico, que pesquisa e que sistematiza, no corpo, uma rede de indícios, sinais e sintomas. Ao seu conhecimento da intimidade corporal, frequentemente plasmado numa visão excremencial do corpo, alia-se no escritor realista a sua actividade de denúncia dos recalcamentos (censuras, inibições), sempre de um modo ou de outro manifestados na superfície do corpo. Na verdade, pressupõe-se o determinismo psicossomático, a ancoragem fatalmente física da personalidade e a analogia entre o corpo e a mente. E pressupõe-se, igualmente, uma inevitável apassivação do sujeito, presa das suas paixões e dos seus atavismos. A patologia e o seu diagnóstico, extensíveis ao corpo social, é figura central nas narrativas realistas e naturalistas.
Nas narrativas de Eça, como em outros autores realistas/naturalistas, o corpo revela o que está escondido, manifesta indícios, marcas, signos, o corpo é sintomático. Por isso, o corpo doente é, simultaneamente, mais interessante e mais decifrável: reduzido à sua disfuncionalidade, é mais expressivo, porque fala, acumulam-se-lhe sinais clínicos, constitui o mapa gráfico da personagem. E, assim, o retrato físico permite o diagnóstico da figura ficcional e do seu destino narrativo. Amaro (de O Crime do Padre Amaro, tem desde criança uma figura amarelada e magrita, é medroso, mono, muito encolhido, tem as mãos húmidas. Mimado e feminizado pelas criadas da madrinha, mostra uma sensualidade precoce, misturada com devoção religiosa. No seminário, com a puberdade, tem terríveis sonhos lúbricos, emagrece, tem suores hécticos e até uma febre nervosa» In Ana Luísa Vilela, Representações da Saúde e da Doença em Eça de Queirós, Universidade de Évora, CEL, Maux en Mots, Universidade do Porto, Faculdade de Letras, 2015, ISBN 978-989-864-446-4.

Cortesia de UPorto/JDACT