segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Para lá da Terra do Fogo. Eduardo Belgrano Rawson. «Não era preciso muito talento para imaginar a viúva a fazer geleia ou a rever a tradução do Novo Testamento para o canalês»

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A ilha dos Guanacos
«(…) Frequentemente sonhava com a visita do arcebispo da América do Sul. Não tinha o prazer de conhecê-lo, mas sempre lhe parecera gentil e majestoso, vagamente parecido ao carteiro da sua aldeia. Aperfeiçoara essa fantasia até a transformar numa gravura grandiosa; o arcebispo chegava à missão para restaurar o Evangelho e saía do barco num entardecer inesquecível. Havia ovelhas a pastar na margem e o chão estava cheio de margaridas e grandes bandos de papagaios assobiavam entre as árvores. Do bosque chegavam os gritos dos seus sobrinhos de Londres que davam ferozes tacadas nas bolas de críquete. Era o mesmo cenário acolhedor dos dias de Dobson, mas os barcos já não paravam. Contudo, a missão mantinha os seus atributos intactos: um fogo aceso desde sempre, várias vacas encurraladas, um mastro pintado de vermelho, canteiros de malvas e um perfume a café que chegava até ao molhe. Vista da coberta de um navio podia perfeitamente confundir-se com uma paisagem irlandesa e era uma tentação para qualquer um. De noite a luz durava até tarde. Não era preciso muito talento para imaginar a viúva a fazer geleia ou a rever a tradução do Novo Testamento para o canalês. Eram raras as visitas. Pouco capitães se mostravam dispostos a suportar passar uma noite junto da viúva e do seu licor enjoativo, nem a simular eternamente que o reverendo expirara durante uma missão pastoral e não entre as pernas da sua convertida preferida. Em vida do reverendo, o seu escandaloso comportamento era o gozo de toda a costa. Os barcos anunciavam a sua vinda com grandes buzinões que soavam como uma homenagem às proezas do pastor. A praia povoava-se de canoeiros alvoroçados e o reverendo trotava até ao cais com um sorriso entre os dentes. Este comportamento dos capitães contrastava hoje em dia com o seu tímido toque ao virar a rocha Charles. que chegava ao coração da viúva como mais uma prova da duplicidade dos homens e da sua falta de preparação para a morte. Teria desejado que os barcos mudassem de rota. Porque davam cabo das suas recordações. De qualquer modo estava resolvida a lutar contra a maledicência dos forasteiros. Tinha jurado que aquelas saudações hipócritas jamais chegariam a prejudicar o seu tesouro: a memória dos dias em que merendava com Dobson no Saint James Park enquanto desenhavam a missão prometida sobre o papel dos bolos.
De vez em quando perguntava de que é que estava à espera para se ir embora. Foi oque lhe perguntou o capitão do Spectre numa noite de Inverno. Sabia de cor todos os argumentos da viúva para adiar a sua partida e também conhecia a famosa visão do arcebispo. Com algumas goladas a menos nem sequer os teria mencionado. Mas estavam em pleno Agosto e as sombras da tarde mostravam que Abingdon era algo digno de ser abandonado. O capitão desceu do barco já bem hidratado, com a sua vocação na mó de cima e disposto ao salvamento. Os canaleses brilhavam pela sua ausência. Nem sequer se viam aqueles espantalhos do País das Chuvas Perpétuas, os únicos que ainda frequentavam os canais do arquipélago e que de vez em quando chegavam à missão empurrados pela miséria. A viúva recebeu-o com um sorriso, ainda estava longe de supor que a partir dessa noite o capitão do Spectre engrossaria a lista dos visitantes indesejáveis. Desarrolhou uma garrafa de ginjinha, sem imaginar que em breve cessariam as dúvidas sobre o regresso a Inglaterra. Então de que falaram? No dia seguinte o capitão não recordava uma palavra. Mas certamente abordaram os temas de sempre: a viagem a Inglaterra, as canalhices de Dobson e a visita do arcebispo da América do Sul.
Foi a viúva quem falou deste último assunto, obcecada com o seu propósito de reabilitar a missão. O capitão estava a terminar a bebida, já não pretendia repatriar a viúva e estava unicamente interessado em voltar a bordo. Tinha perdido de vista as luzes do barco e temia que estivesse outra vez a nevar. A viúva começou a recitar de cor todas as suas cartas de Londres. O capitão olhou para o fundo do copo. Algo que brotava na sua cabeça serviu-lhe para rematar a conversa: deixe-se dessa do arcebispo. Nunca lhe verão o cabelo por estas bandas. Quer saber porquê? Ela olhou-o com o coração dilatado». In Eduardo Belgrano Rawson, Para lá da Terra do Fogo, 1991, 1999, Quetzal Editores, 2009, Lisboa, ISBN 978-972-564-784-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT