sábado, 19 de novembro de 2016

Papas Perversos. O Papa-Rei. Russel Chamberlin. «Mais de 150 anos tinham passado desde que Carlos Magno fora coroado imperador do Ocidente pelo papa Leão III. Durante século e meio…»

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«(…) Por isso continuou este rumo durante três longos anos até que surgiu um inimigo fora de Roma, o novo rei de Itália, com quem os seus inimigos dentro das muralhas se poderiam aliar. Este novo rei era muito pior do que o outro. O seu nome era Berengário, duque de um dos velhos ducados lombardos, que lutara à sua maneira pelo poder com os meios habituais de assassínio e traição, e se mantinha no poder com os habituais bandos de semibandidos, que o apoiariam enquanto tivessem nisso vantagem. O reinado começou com assassínio e continuou com uma violência e uma profunda avidez que superou até o reinado de Hugo da Provença. Acerca da mulher de Berengário, Liudprand observou causticamente que era apenas a personalidade da filha que lhe roubava o título de pior mulher viva. A sua avareza era insaciável: as damas da corte aprenderam a aparecer diante dela sem jóias, pois o que cobiçava pedia imediatamente.
Durante algum tempo, após a sua coroação, Berengário pilhou o Norte de Itália; depois, inevitavelmente, começou a dirigir-se para Sul, atraído, como todos, por Roma. O exército que o apoiava parecia-se mais com um bando de salteadores do que o exército de um rei, mas os que o compunham eram lutadores vigorosos, pensando no saque, que todos acreditavam haver na cidade. A agradável carreira de João suspendeu-se subitamente. Atrás de si, cidadãos à beira da desordem; perante si, um inimigo implacável que era também um soldado hábil. O manto de príncipe caiu-lhe dos ombros, revelando apenas um jovem amedrontado, cujo único pensamento era salvar a vida e se possível os seus prazeres. Agora era apenas príncipe em título; mas ainda era papa, e como chefe supremo da Igreja Cristã podia apelar aos mais profundos e nobres instintos de todos os seus filhos. No ano de 960, João chamou em seu auxílio o imperador Otão da Saxónia.

A vinda do Imperador
Mais de 150 anos tinham passado desde que Carlos Magno fora coroado imperador do Ocidente pelo papa Leão III. Durante século e meio, a coroa do império tinha-se tornado o vil pretexto para uma guerra de facções, um título vazio, a que até Marózia e Hugo aspirariam. Todavia, ainda subsistia a memória do nobre pacto feito nesse distante dia de Natal, quando as nações em guerra na Europa haviam sido de novo unidas sob um único líder. A unidade não sobrevivera a Carlos Magno, mas a partir daí os homens olharam para o Império Carolíngio como uma Idade de Ouro perdida. Sabia-se que o bispo de Roma podia criar um senhor supremo da Europa que traria a Lei e, com ela, a paz. Contudo, quando um verdadeiro grande rei, Otão da Saxónia, surgiu na Alemanha, foi como se pisasse um palco que estivera mais de cem anos à espera do seu protagonista. Encontrou a Alemanha dividida em cinco grandes ducados, racialmente distintos: fundiu-os num só e impôs-se como chefe.
Otão não se podia reclamar descendente de Carlos Magno, pois sendo Saxão nem era do mesmo povo. Mas, como o grande antecessor, o poder pessoal superaria os argumentos dos juristas, e para alcançar o seu fim, o restabelecimento do Império Carolíngio, reencenou a coroação de Carlos Magno. Recebeu a coroa alemã na linda igreja circular que Carlos Magno tinha construído em Aachen e deram-lhe, sucessivamente, a espada do grande monarca franco, o ceptro, a valiosíssima Lança Sagrada, a lança que trespassara Cristo na cruz. A corte que organizou foi modelada segundo a de Carlos Magno, e embora não se pudesse comparar em qualidades intelectuais, impôs-se todavia no seu tempo como um rei jovem e poderoso, atraindo os mais diversos povos dos quatro cantos da Europa. Entre eles estava o bispo lombardo de Cremona, Liudprand, cujas histórias vívidas, a única orientação de confiança deste século de trevas, conservaram religiosamente a memória de Otão como príncipe de todas as virtudes. Mas não foram as suas pretensões intelectuais e imperiais que tornaram Otão grande aos olhos dos povos para lá das florestas alemãs. Pretendentes imperiais eram algo comum e pretensões intelectuais eram deixadas aos clérigos. O que ele fizera foi esmagar a ameaça terrífica dos Hunos que haviam ensombrado a Europa durante mais de uma geração». In Russel Chamberlin, The Bad Popes, Sutton Publishing, 1969, Papas Perversos, Edições 70, Lisboa, 2005, ISBN 972-44-1207-5.

Cortesia Edições70/JDACT