terça-feira, 15 de novembro de 2016

Erotismo Queirosiano. Ana Luísa Vilela. «A sua exuberância e simetria simbólica, o reportório figurativo que mobiliza, revelarão o prodigioso efeito seminal da leitura do filósofo, e constituirão uma chave interpretativa que a leitura da ficção de Eça»

Cortesia de wikipedia e jdact
«(…) A essencial perversidade do eros, intuída muito cedo por Eça, tem agora uma explicação positivista, a idealização do mal e da infracção pela criminosa poesia romântica. A devoção religiosa, cuja iniquidade na formação feminina foi já denunciada, e que convoca, aliás, aspectos semelhantes aos do erotismo, emotividade, imaginação, irracionalidade e ociosidade, é também visada n’ As Farpas através, por exemplo, da caricatura do sermão obsceno e pela intuição da recíproca contaminação entre o erotismo e o misticismo. A questão do casamento, associada à do adultério, surge logicamente num quadro de preocupações morais dominado pela questão feminina, e tão insolúvel, parece, como esta. Numa Farpa datada de Outubro de 1872, Eça dedica muitas páginas à análise minuciosa do traição conjugal, a que apenas a revolução, pela ciência de Proudhon, começa a dar uma solução racional e positiva. De qualquer forma, a disponibilidade das mulheres para o amor, disponibilidade orgânica e cultural, constitui o principal factor do adultério. A aprendizagem exclusiva da sedução, aliada à inacção física e à desocupação intelectual, desenvolve, nestas Circes quietas e perigosamente imaginativas, as pérfidas artes de adormecer e seduzir. E se, de facto, é na moral convencional um chique ter tido amantes casadas, e o sedutor se torna mais sedutor pela sua auréola perfumada, o autor apressa-se a declarar que, em Portugal, Satanás anda longe. Ou seja: a virilidade não tem, para sossego dos maridos, representantes condignos em Portugal. A visão genérica de uma cultura dominada pelo omnipresente erotismo feminino será justamente a súmula temática do opúsculo de Proudhon, publicado em 1875, La Pornocratie ou Les Femmes dans les Temps Modernes. A aliança da misoginia à reflexão política e social, no intuito justiceiro de farpear a tolice, com o seu Proudhon mal lido debaixo do braço, antecipa-se nestas Farpas de Eça. A sua exuberância e simetria simbólica, o reportório figurativo que mobiliza, revelarão o prodigioso efeito seminal da leitura do filósofo, e constituirão uma chave interpretativa que a leitura da ficção de Eça de Queirós não pode dispensar. No entanto, duas questões ficaram por responder: pela ciência de Proudhon, qual é a solução racional e positiva para o adultério? E, se o adultério acontecer e for descoberto pelo marido, como pode este reagir-lhe? A resposta à primeira pergunta é simples: colocar a mulher nas ocupações da família, eis o que achamos de mais genérico para evitar a dissolução do casamento. A actividade, mesmo lúdica, deserotiza a mulher, é um antídoto da idealização: toda a mulher que se não cansa, idealiza. Em todo o caso, ao desprevenido marido, resta a reacção mais conforme ao seu temperamento: todos estes infelizes se desesperaram; mas, com a lógica do seu carácter, o bárbaro generoso mata, o civilizado infame faz assinar a letra. Apraz-nos observar, nas várias representações de maridos enganados de Eça, a hegemonia absoluta de civilizados infames. Em suma: no adultério em Portugal, à inferioridade do sedutor e à debilidade da seduzida, corresponde a frouxidão do ofendido. Pelo menos durante os quinze anos seguintes às Farpas, praticamente todo o discurso não-ficcional de Eça reitera, especifica e dilata as teses de 1871, e as subsequentes aplicações nos dois romances que entretanto publica: O Crime do Padre Amaro (1875 e 1880) e O Primo Bazílio (1878). Da mesma forma, falando sobre o seu próprio casamento, em 1885, Eça não resiste a normalizá-lo ideologicamente, colocando-o sob o signo anti-romanesco do amor-amizade. A partir de 1872, o discurso crítico firma-se na opção ideológico-estética do Realismo-Positivismo, estabelecendo-o como um discurso da verdade, iluminador, justiceiro e redentor. Trata-se agora de entranhadamente investir o discurso literário de um mandato cívico: o de coadjuvar a Revolução, tudo revelar, para tudo mudar. E este tudo insidiosamente se especializa na verdade do sexo, uma verdade que o idealismo mascarou de sublimidade. Por outro lado, sendo o novo movimento progressivamente revestido dos valores fulgurantes da virilidade vigorosa, é, assim, perfeita a simetria com a feminizante e corruptora decadência literária, cuja temática amorosa, num curioso processo de denegação, exaspera sempre Eça de Queirós». In Ana Luísa Vilela, Erotismo Queirosiano, Universidade de Évora, ContraNatura, Wikipedia. 
Cortesia de ContraNatura/Wikipedia/JDACT