quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Do Desastre de Lisboa Olen Steinhauer. «Talvez não tenha a ver com a televisão a cores, digo. Jake vira-se de repente para mim, em seguida sorri: estás a gozar, não?»

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«Escuta, eu compreendo a raiva, diz Jacob Keenan e, à luz mortiça, suja, da carrinha, a expressão do seu rosto é convincente. Quero dizer, quem não compreende? Viajaste pelo Afeganistão, sabes como é. Cabanas de lama e ignorância. Quando se nasce nesse mundo, o melhor que se tem a fazer e dar um tiro na cabeça. Muito mais fácil do que lidar com a esperança, a pensar que um dia se vai ter uma televisão a cores. E os mulás sabem disso. Têm a sua maneira especial de dizer a mesma coisa vezes sem fim a uma longa fila de adolescentes de desesperançados: se te vais matar, então porque não acrecentar uma longa pilha de cafres ao número de cadáveres? Cantamos em teu louvor e assistimos ao vídeo do teu martírio enquanto tu, caro amigo, te divertes à grande com quarenta virgens no paraíso. Endireita-se, depois estica o pescoço para um lado e para o outro, como fazem os homens musculados. Sim, compreendo a raiva. Só um parvo não a compreenderia. O que eu não compreendo é porque não temos mais gente no terreno a convencê-los de que podem mesmo ter uma televisão a cores se fizerem uns trabalhinhos para nós. Poupava-se uma data de chatices a todos.
Talvez não tenha a ver com a televisão a cores, digo. Jake vira-se de repente para mim, em seguida sorri: estás a gozar, não? Se há uma coisa comum a toda a humanidade é que podemos ser comprados. Entra no vale do Swat com dez consolas Wii e tens a lealdade dos primeiros dez putos que encontrares. Provavelmente até dos pais deles. Tem sempre a ver com a televisão a cores. Lamentei não termos os nossos telemóveis para podermos ao menos ficar calados na escuridão desta carrinha branca. Nem telefones. Nem identificação da embaixada. Nem cartões de crédito, nem cartas de condução. Só Sam teve direito a carta de condução e mesmo assim com um nome diferente. Portanto, há duas horas que Jake e eu estamos fechados numa carrinha abafada estacionada no arborizado largo do Carmo, à porta do Museu Arqueológico do Carmo, na Baixa, sem nada para nos distrair. Com telefones móveis, podíamos entretermo-nos com uns jogos, ler o Times ou pôr a correspondência em dia. Devo um e-mail aos meus filhos há pelo menos uma semana. Mas não. Em vez disso, tenho de gramar a conserva ansiosa de Jake Keenan. Sempre tão calado na embaixada, afinal fala pelos cotovelos mal os holofotes se apagam. A ansiedade operacional faz isso a alguns.
Diz: querem que a gente pense que a única coisa que lhes interessa é Deus, mas os seres humanos não são assim. A nossa literatura, cito, é um substituto da religião, e a nossa religião também o é. O quê? Os olhos de Jake, pouco visíveis na escuridão na escuridão, estreitam-se. Abano a cabeça: nada. Agora deste em filósofo? É de Eliot. De quem? T.S. O poeta». In Olen Steinhauer, Do Desastre de Lisboa, 2014, Bertrand Editora, Lisboa, 2015, ISBN 978-972-252-972-3.

Cortesia de BertrandE/JDACT