domingo, 13 de novembro de 2016

Corpo Reflectido. Cidália Dinis. «Os meus seios que ficaram incólumes no atrito das chapas, transformaram-se em dálias enormes, da cor do leite…»


Cortesia de wikipedia e jdact 

«(…) E se num primeiro momento a poeta parece entrar no espelho cortante do tecto, contemplando o quadro, agora parece querer sair desse quadro e, num acto fatal, voraz, volta a desenhar as palavras com uma mescla de vermelho sanguíneo, com o azul mais intenso para encobrir o seu Corpo que outrora deixara de lhe pertencer. O mundo exterior é então reduzido ao essencial e uma sequência de acontecimentos é condensada num clímax poderoso, onde saindo do espelho cortante do tecto, a poeta fita no umbral do quadro os monstros que recuam inertes/ por entre vestidos brancos/ e rosa, e as flores do México se acendem nos seus olhos.
Nesse simulacro de horizonte há uma espécie branca/ de paixão, que nasce com/ o poema, com o cuidado/ implacável de negar as palavras/ à mudez do instante. Este cuidado está inscrito e jorra do sangue da poeta, na arte de acumular na pele, os sentidos, milhões de impulsos verbais. Aí a poeta enraíza a palavra, constrói um verso e no fremir imperceptível de uma ave, na rasura da penumbra, descobre o rosto amado, que ao inclinar-se na janela do olhar/ encostado ao corpo da cidade/ que nos habita vai ficar/ para além de nós, nessa descida/ até à margem de um rio/ onde só o poema/ consegue transgredir/ as inexoráveis águas (Uma Arte da Paixão).
Voando nas asas do silêncio, na crescente mancha dos espelhos, as palavras revestem-se de intemporalidade e o poema esse pronuncia-se voraz e fatalmente, como quem anseia possuir o ar. Nesse voo fatal, poder-se-ia dizer, parafraseando Jorge de Sena, que Um só Poema basta para atingir a Terra. 
A Cama Voadora de Frida Kahlo
«Neste simulacro de horizonte
onde principiam
e finalizam os meus dias,
para além da barra de inox
e dos tubos de vermelho
sanguíneo que atravessam
o azul mais intenso
da penugem de uma ave exótica.

Este cheiro forte das tintas
encobre o do meu corpo,
que deixou de me pertencer
para entrar no espelho cortante
do tecto, que fito
no umbral do quadro
onde provoco o negro
das minhas sobrancelhas
e a espessura dos matizes.

Os meus seios
que ficaram incólumes
no atrito das chapas,
transformaram-se em dálias
enormes, da cor do leite
e os monstros recuam inertes
por entre vestidos brancos
e rosa, e as flores do México
acesas nos meus olhos».
In Inês Lourenço 
In Cidália Dinis, Corpo Reflectido, Trabalho apresentado no seminário Caminhos da Poesia Portuguesa Contemporânea, do Modernismo ao Pós-modernismo, Revista da Faculdade de Letras, Línguas e Literaturas, II Série, vol. XXIII, Porto, 2006 [2008], Wikipedia.
 Cortesia de RFLPorto/JDACT