domingo, 13 de novembro de 2016

Corpo Reflectido. Cidália Dinis. «O modelo anatómico da parte de baixo de um corpo, de cor salmão, que está por cima dos pés da cama, assim como o modelo de osso em baixo, à direita, indica-nos a causa do aborto»

Cortesia de wikipedia e jdact
«(…) Fernando Pinto Amaral e João Barrento, entre outros, analisando a poesia portuguesa da pós-modernidade, diagnosticaram-lhe um generalizado e difuso sentimento de melancolia. Ora, em Inês Lourenço não encontramos propriamente um fio condutor impregnado de melancolia, mas sim um turbilhão de sensações, resultantes de um jogo de espelhos que reflectem a realidade, o quotidiano, o corpo, o sangue seiva da vida, a herança indecifrável de respirar. Engana-se o leitor que pensa encontrar na sua obra uma poética mais ligada ao instinto carnal, voltada para uma recondução do indivíduo às suas raízes, à sua animalidade. Nela, encontramos antes o Corpo como imagem, como espelho cortante, numa ligação umbilical com o Cosmos. Neste simulacro de horizonte, a tónica recai no universo feminino, no ar, na liberdade, no vermelho sanguíneo, no corpo reflectido, onde, como refere Sophia Andresen, os espelhos acendem o seu segundo brilho (Geografia), brilho que extravasa o corpo feminino, a realidade, a circunstância, num despertar de sentidos (sugeridos, por exemplo, pelo título Carpe Diem). A Cama Voadora de Frida Kahlo, não será antes o consubstanciar de uma poesia que mais do que minimalista (como referiu Fernando Guimarães, entre outros) é o fruto desse laço umbilical com que se pinta a relação Corpo/Cosmos? É precisamente nesta relação que, entrando no espelho cortante, parecem misturar-se as tintas da tela com a tinta que escorre da última gota da pena da poeta. Se na tela do poema Inês Lourenço escolhe os tons de vermelho sanguíneo, num claro contraste com o azul intenso para encobrir o corpo, procurando entrar no espelho cortante do tecto, numa tentativa de provocar a espessura das matizes; também Frida Kahlo cobre o seu quadro de tintas representativas da condição feminina, da sua relação com o Corpo. De facto, o quadro mostra-nos a artista toda nua, deitada numa cama de hospital, que é demasiado grande em relação ao seu corpo. O lençol branco por debaixo do seu baixo-ventre está ensopado de sangue. Por cima da barriga estão três fitas vermelhas, como se fossem artérias, que ela segura com a mão esquerda, e que têm seis objectos atados às suas pontas – símbolos da sua sexualidade e da gravidez falhada. A fita que está por cima da poça de sangue à volta da pélvis transforma-se num cordão umbilical e leva-nos até um feto masculino de tamanho invulgar em posição embrionária. Por cima da cabeceira da cama, à direita, vê-se um caracol a flutuar, símbolo não só da interrupção da gravidez, como também da vitalidade e sexualidade, uma vez que a sua casca protectora não é mais do que símbolo da concepção da gravidez e do nascimento. Ao sair e ao esconder-se na casca, relaciona-se com as fases crescente e minguante da Lua, que por sua vez representa o ciclo feminino e, consequentemente, a própria sexualidade (amplamente retratados por Inês Lourenço neste seu percurso de vinte anos). O modelo anatómico da parte de baixo de um corpo, de cor salmão, que está por cima dos pés da cama, assim como o modelo de osso em baixo, à direita, indica-nos a causa do aborto: o dano da coluna e da pélvis, no fundo, o que impossibilitou Frida Kahlo de ter um filho. O maquinismo que vemos em baixo, à esquerda, também deve ser entendido neste contexto. Representa, provavelmente, uma parte de um esterilizador a vapor, como os que se utilizavam nos hospitais naquele tempo. A orquídea que está ao centro, por baixo da cama, é também ela símbolo de sexualidade e de emoções. Neste cenário pintado por tintas sanguíneas, a pequena figura da artista parece evocar a solidão e a vulnerabilidade perante uma vasta planície, que é simultaneamente reflexo dos próprios sentimentos de Frida Kahlo, mas também símbolo de progresso tecnológico, onde imperam barras de inox e tubos, num nítido contraste com o destino humano da artista». In Cidália Dinis, Corpo Reflectido, Trabalho apresentado no seminário Caminhos da Poesia Portuguesa Contemporânea, do Modernismo ao Pós-modernismo, Revista da Faculdade de Letras, Línguas e Literaturas, II Série, vol. XXIII, Porto, 2006 [2008], Wikipedia.
Cortesia de RFLPorto/JDACT