domingo, 20 de novembro de 2016

Aprendizagem. O arranque dos Descobrimentos. Paulo Jorge Pinto. «A conquista de Ceuta fora um sucesso, mas importava prosseguir a guerra. E enquanto não havia condições para fazê-lo, afinal, Ceuta, fora cercada logo em 1419…»

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Porque só em 1434 foi passado o cabo Bojador?
«(…) O infante Henrique, que dispunha das rendas da Ordem de Cristo, de que era administrador, foi esse homem. Durante mais de uma década, enviou os seus homens para irem além do Bojador, sem sucesso, até que Gil Eanes acedeu finalmente, em 1434, tendo sido generosamente recompensado após o seu regresso. Não parece ter encontrado grandes dificuldades, no fim de contas. O cronista Zurara registou o que fora, afinal, um bluff: e já seja que o feito, quanto à obra, fosse pequeno, só pelo atrevimento foi contado por grande. E que contou Gil Eanes? Muito pouco: não vira gente nem nada de especial interesse, limitando-se a trazer uns arbustos que colhera na terra para, de alguma forma, provar que lá estivera. De tal modo foi decepcionante e, talvez, duvidoso o seu relato, que o infante o mandou de imediato repetir a viagem, desta vez acompanhado com alguém de sua inteira confiança. Desta segunda viagem resultou uma novidade: viram pegadas humanas e rasto de camelos. Porque estava o infante Henrique tão interessado, afinal, em vencer aquela barreira? São célebres as cinco razões que Zurara expõe na sua Crónica da Conquista de Guiné. Há motivações práticas (comércio, conhecimento da extensão do mundo muçulmano) e ideológicas (procura de aliados cristãos, salvação das almas), mas também simples curiosidade. Para um qualquer marinheiro, essa curiosidade era inconsequente, mas para o infante, não: era uma curiosidade, digamos, geopolítica.
A conquista de Ceuta fora um sucesso, mas importava prosseguir a guerra. E enquanto não havia condições para fazê-lo, afinal, Ceuta, fora cercada logo em 1419 e os custos da sua manutenção esvaziavam os cofres do Estado, o infante Henrique não ficava de braços cruzados à espera que surgisse uma nova oportunidade para retomar a acção militar. Nesse entretanto, havia todo um trabalho árduo e moroso a fazer: fortalecer a presença portuguesa no Estreito e garantir a segurança da navegação face aos corsários mouriscos, prosseguir a guerra no mar enquanto não era possível retomá-la no terreno, promovendo o corso e o assalto à navegação inimiga, e finalmente, porque não, explorar e conhecer os limites do poderio adversário, precisamente numa região mal conhecida e que não despertara interesse: a costa atlântica.
Não foi, assim, por acaso que a primeira tentativa de ocupação das Canárias tenha ocorrido pouco depois do início das viagens destinadas a passar o Bojador, em 1421. A chegada à Madeira (cuja existência era, provavelmente, já conhecida) ocorreu também nesta conjuntura. Portugal, pela mão de um membro da família real, e não da Coroa, como por vezes se subentende, ganhava deste modo um renovado interesse pela faceta atlântica de Marrocos, onde não havia jurisdição tácita de Castela de que se trataria de terras de sua conquista, como acontecia em Granada ou nas paragens marroquinas a leste de Ceuta. Neste contexto, ganha especial relevo uma das cinco razões, apontadas por Zurara: a que menciona o interesse do infante Henrique em saber até onde se estendia o mundo islâmico. Talvez fosse possível, deste modo, contornar Marrocos pelo sul e, quem sabe, encontrar gente cristã, ou, pelo menos, não-muçulmana, que pudesse servir de apoio e aliança estratégica comum.
As tentativas para passar o Bojador tiveram, assim, tudo que ver com o que estava em jogo na altura: o regresso à guerra e a retomada da (re)conquista do norte de África. A viagem de Gil Eanes, que hoje se aceita unanimemente ter quebrado o isolamento milenar da Europa e inaugurado uma nova era, por pouco que não ficou no esquecimento. Três anos depois, como afirma Zurara, passou o nobre infante Henrique em Tânger, por cuja razão não enviou mais navios contra aquela terra». In Paulo Jorge Sousa Pinto, Os Portugueses Descobriram a Austrália? Porque foi Conquistada Ceuta? O arranque dos Descobrimentos, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-498-7.

Cortesia de EdosLivros/JDACT