quinta-feira, 17 de novembro de 2016

A Rainha Adúltera. Joana de Portugal. O Enigma da Excelente Senhora. Marsilio Cassotti. «Este castelo daria origem ao apelido da filha ilegítima que tivera com a donzela da mãe da infanta: uma criança que anos mais tarde seria donzela de Joana em Castela»

jdact

Uma carta escrita pela minha mão
«(…) É certo que essas obras dedicadas ao ensino das mulheres das classes altas tinham sido na maioria das vezes inspiradas pelas melhores intenções, e que havia mais de um século que os seus autores se tinham esforçado por acentuar o valor intelectual desses conhecimentos. Mas quase todas tinham sido escritas por homens, na sua maioria clérigos. Por isso, o seu desejo era quase sempre o de tentar moldar os comportamentos e atitudes das adolescentes para, que respeitassem o valor da castidade, virtude suprema das mulheres e inclusivamente dos humanistas realmente interessados na educação feminina. A honestidade e a vergonha eram as outras duas virtudes principais que se exigiam a uma mulher naquela época, qualquer que fosse a sua origem social. Complementares entre si, a primeira era absolutamente necessária, uma vez que faltasse era como se ao homem faltassem todas.
Tudo isto se resumia numa frase então muito em voga e que muito depois andaria na boca de muitos súbditos castelhanos de Joana: o homem para ser bom basta-lhe ser bom, ainda que não o pareça. Mas a mulher para ser boa não lhe basta parecer boa, tendo também de ser boa. Uma espécie de releitura, em código cristão, do velho adágio: a mulher do César não só deve ser honesta como também deve parece-lo. Em finais de 1449, quando a corte se encontrava em Évora, ocorreram em Lisboa os primeiros incidentes graves contra a minoria judaica de que há registo no reino de Portugal no século XV. Desconhece-se se as infantas Catarina e Joana se encontravam nesse momento na capital do reino ou se se tinham deslocado para o Alentejo com a corte do seu irmão. De qualquer modo, a proximidade física do lugar onde ocorreram os factos (a chamada judiaria velha, na actual baixa, de Lisboa), com o lugar onde elas residiam habitualmente e, sobretudo, as contínuas e qualificadas relações da sua mãe, do seu irmão Afonso e do seu tio Henrique, o Navegador (?), com alguns membros conspícuos da linhagem dos Yahia ou Negro, permitem supor que esses acontecimentos não passariam despercebidos às infantas. Mais difícil é saber que grau de influência teriam na configuração da mentalidade da mais nova delas a respeito de pessoas provenientes de uma minoria religiosa, alguns membros da qual chegariam a ter uma influência decisiva na vida íntima da futura rainha de Castela.
De qualquer modo, as tensões religiosas que se viviam em Lisboa não impediram Afonso V de continuar a recompensar os antigos servidores que tinham acompanhado a mãe ao exílio e que, por lhe serem fiéis, tinham sofrido não apenas o afastamento da sua terra natal como também a confiscação das suas propriedades. Entre eles encontrava-se Pedro Góis, filho do antigo prior do Crato, a quem, depois de regressar de Roma, o irmão de Joana doou, em 1450, o castelo da Lousã, no ducado de Coimbra, expropriado a um partidário do antigo regente. Este castelo daria origem ao apelido da filha ilegítima que tivera com a donzela da mãe da infanta: uma criança que anos mais tarde seria donzela de Joana em Castela. Apagados os ecos de Alfarrobeira e sufocadas as revoltas antijudaicas de Lisboa, em Junho de 1450 foram retomadas as negociações de casamento de Frederico III da Alemanha. Fora então decidido que a escolhida para se converter na primeira das duas imperatrizes proveniente da casa de Avis fosse a infanta Leonor.
Começando a cumprir a promessa, que fizera à irmã, de casar as infantas, o rei Alfonso V de Aragão escreveu naquela altura ao sobrinho, Afonso V de Portugal, para lhe comunicar que o imperador Frederico determinara o dia 15 de Agosto seguinte para que os emissários alemães se encontrassem com ele em Nápoles. Por essa razão, e porque desejamos a conclusão do dito matrimónio, se a vós vos convier ao notificar-vos das ditas coisas vos pedimos que, sendo a vós agradável o dito matrimónio, nos mandeis os vossos embaixadores plenamente instruídos sobre o dito negócio. Para tal fim, o rei de Portugal acabaria por enviar a Nápoles João Fernandes Silveira, homen Fydalgo, prudente e gram letrador. O facto de ter sido Leonor a escolhida indica, provavelmente, que, além da opinião das damas austríacas a respeito da virtude dessas jovens, se preferira seguir a tradição de casar primeiro a mais velha delas. Algo que, em teoria, implicava que, antes de se casar, Joana teria de esperar que o fizesse primeiro a sua irmã Catarina. É possível que um acontecimento ocorrido do outro lado da fronteira tenha adiantado essa possibilidade». In A Rainha Adúltera, Joana de Portugal e o Enigma da Excelente Senhora, Crónica de uma difamação anunciada, Marsilio Cassotti, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-405-5.

Cortesia da EdosLivros/JDACT