segunda-feira, 28 de novembro de 2016

A Musa de Camões. Maria Helena Ventura. «Claros raios de sol, formosos olhos que as chaves ambas tendes da minha alma»

jdact

O Outono da Saudade
«(…) É a filha adoptiva que parte... Soubera ela o que estava por vir e teria amenizado, com mais amena convivência, a dureza da sua tão proclamada piedade. Primou pela arrogância, exerceu pesada influência em El Rei para agradar a Castela, ao irmão imperador e depois ao sobrinho. Muito dano causou à Senhora Infanta. A voz do capelão-mor dá início às cerimónias fúnebres enquanto mais pessoas vão desafiando a capacidade do espaço. Com os soluços a aumentarem de tom volto a passar os olhos pelos presentes, lá à frente, depois pelos que me rodeiam, cá atrás, em recíprocas cotoveladas para conseguirem ver a cara do capelão. Conheço a história de quase todos, identifico tanto quem representa a dor como a plangente saudade. Como a daquele homem no fundo da nave, do meu lado direito, a tentar embrulhar-se no anonimato com uma rosa murcha na mão. É de meia estatura, bem constituído, barba e cabelo mais grisalhos do que ruivos, com o olho direito vazado. À medida que tenta esconder-se cresce no respeito que sempre lhe tive, o respeito que justificou que o tivesse ajudado a entrar em Santa Clara, há mais de cinco lustros. Já então corriam sobre a sua vida boatos de desventura, ousadia, e muito engenho para as rimas.

Claros raios de sol, formosos olhos
que as chaves ambas tendes da minha alma

Durante o tempo que passou na Índia alimentei a esperança de o ver chegar melhor de vida, consumar o amor com Sua Senhoria. Mas vejo hoje que só por milagre voltaria ao paço com livre permissão para animar serões e cortejá-la. Voltou pobre como partiu, doente, desiludido pela constância da má sorte. Só a publicação da história dos portugueses em 1572, poeticamente lavrada em oitava rima, lhe trouxe sumida glória, o privilégio de uma tença de quinze mil réis anuais por alvará de El Rei Sebastião. Não lhe deve ter escapado o empenho da Infanta junto de Sua Alteza, o sobrinho, os pedidos ao cardeal, seu irmão e inquisidor mor... A obra acabou por ser recompensada, ainda que humildemente, depois de ser poupada aos cortes da censura.
Só nos últimos anos, com mais tempo para meditar Camões percebeu o labor constante do seu anjo da guarda. Foi o que me pareceu, quando há dias me garantiu estar pronto a dar uma ajuda para lhe amenizar o sofrimento. Não foi a tempo. Agora aqui está, amparado por um homem que dizem ser o criado que trouxe do Oriente, outros que um amigo de posses lhe ofereceu. António, como lhe chamam, Jau por ter vindo da ilha de Java. dizem por aí. Parece que menos lhe importa o nome do que servir de bom protector a seu amo. Segue-o de longe, com sua identidade e aspecto estranhos, estranheza acentuada pelo facto de ninguém o ter mencionado a bordo da nau que trouxe ao reino o poeta. A figura pode denunciar origem exótica, mas o português que fala torna-o filho da nação, um filho de pele escura amarelada, cabelo farto e negro a encobrir o pescoço, na fina expressão uma dignidade pouco comum em lacaios.
Anda sempre com receio do amo atrair outra desgraça maior, a perseguição de uma alma atormentada, como lhe garantem as raízes do culto animista que mantém, às escondidas. Devota-lhe há mais de três pares de anos a fidelidade de um familiar muito chegado, e não precisa fixá-lo muitas vezes para lhe perceber a natureza dos sentimentos. É ele que me segreda mais tarde como o poeta soube da repentina morte de Sua Senhoria no convento de S. Domingos, aonde vai por hábito desde as conversas com frei Bartolomeu Ferreira, revisor da Inquisição (maldita). Um dos frades mais velhos, ao corrente do seu afecto pela Senhora Infanta, passou-lhe a notícia sem esperar o profundo abalo, como se o tivesse atingido uma pedra na cabeça. Ainda ofereceu ajuda quando o viu cambalear, mal refeito do choque, porem Camões afastava-se do convento numa despedida silenciosa. Nunca mais conseguiu apaziguar o coração, amparado aos muros do claustro enquanto descansava das muletas. Varriam-se-lhe da ideia as conversas teológicas, as pequenas alegrias com o sucesso de Os Lusíadas, razão mais grata da sua existência. Só o roseiral fresco no jardim interior lhe demandou atenção, a recolha de uma flor». In Maria Helena Ventura, A Musa de Camões, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-940-6.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT