domingo, 6 de novembro de 2016

A Ilha do Tesouro. Robert Louis Stevenson. «Todos os dias, ao voltar do passeio, perguntava se quaisquer marítimos tinham passado na estrada. A princípio pensávamos que fazia essa pergunta por sentir a falta dos seus iguais…»

jdact e wikipedia

«Pego na pena no ano da graça de 17..., e volto ao tempo em que o meu pai tinha a hospedaria Almirante Benbow: e ao dia em que sob o nosso tecto se alojou o velho marinheiro de face queimada e marcada por um golpe de sabre. Dele me lembro como se fosse ontem, a arrastar os passos até à porta da hospedaria, e da arca de porão que atrás dele seguia num carrinho de mão; alto, forte e pesado, era um homem acastanhado; o rabicho oleoso caía-lhe nos ombros do casaco azul mais que sujo; as mãos calejadas e cobertas de cicatrizes, as unhas pretas e rachadas; e a marca do golpe de sabre através do rosto era de um branco sujo e lívido. Lembro-me de o ver observar a enseada enquanto assobiava para si próprio e, a seguir, sair-se com aquela velha cantiga do mar que tantas vezes cantou depois: quinze homens na arca do morto, Aiou-ou-ou e uma garrafa de rum! Numa voz aguda, velha e esganiçada, que parecia ter sido afinada e gasta nas barras dos cabrestantes. De seguida bateu à porta com uma amostra de bengala que lhe servia de bordão e, quando o meu pai apareceu, encomendou de má catadura um copo de rum. Quando este lhe foi servido, bebeu devagar, como entendedor, demorando-se a apreciar-lhe o sabor e continuando ainda a olhar em volta, para os rochedos e para a nossa tabuleta. Tem bom ar a enseada, declarou por fim, e a taberna está bem situada. Muita gente por cá, camarada? O meu pai disse que não, que havia muito pouca, o que era uma lástima. Bem, retorquiu, então é o ancoradouro que me convém. Olha cá, ó moço, gritou para o homem que trazia o carrinho de mão, atraca aí e traz a arca para cima. Vou cá ficar por uns tempos, continuou. Sou um homem simples; basta-me rum e toucinho com ovos, e aquele alto além para ir ver os navios passar. E como me hão-de tratar? Pois tratem-me por capitão. Ah, já percebi o que pretende..., tome lá, e atirou três ou quatro moedas de ouro para a soleira da porta. Avise-me quando tiver gasto isso, terminou, tão soberbo como um almirante.
E na verdade, por más que fossem tanto as roupas como a linguagem, não tinha nada o aspecto dum homem que trabalhasse no convés, mas mais lembrava um imediato ou um comandante, habituado a ser obedecido ou a castigar. O homem que trazia o carrinho de mão contou-nos que a mala-posta o deixara, na véspera de manhã, no Royal George; que tinha querido saber que estalagens havia ao longo da costa e, ao dizerem-lhe bem da nossa, creio, e também que era isolada, a tinha escolhido entre as mais para sua residência. E foi tudo o que ficamos a saber sobre o nosso hóspede. De costume, era um sujeito muito calado. Durante todo o dia se perdia pela enseada, ou nas arribas, com um telescópio de latão; e todos os serões se sentava num canto da sala junto ao fogão, a beber rum com água sem parar. Quase nunca falava quando alguém se lhe dirigia; limitava-se a levantar a cabeça num gesto brusco e cheio de soberba, roncava pelo nariz como uma sirena de nevoeiro e tanto nós como os clientes nos habituamos em pouco tempo a deixá-lo em paz. Todos os dias, ao voltar do passeio, perguntava se quaisquer marítimos tinham passado na estrada. A princípio pensávamos que fazia essa pergunta por sentir a falta dos seus iguais; mas por fim começamos a ver que desejava evitá-los. Sempre que algum marinheiro ficava na Almirante Benbow (o que por vezes sucedia com os que se dirigiam a Bristol pela estrada da costa) espiava-o pela cortina antes de entrar na sala; e sempre que lá estivesse qualquer desses homens era certo e sabido que ele se conservava calado como um rato. Para mim, pelo menos, não havia naquilo nenhum segredo; porque, de certa maneira, partilhei dos sobressaltos dele.
Uma vez, chamara-me de parte para me prometer quatro dinheiros de prata no primeiro dia de todos os meses se eu estivesse sempre de vigia para avistar um marinheiro duma perna só, e o avisasse logo que este aparecesse. Muitas vezes, quando no primeiro dia do mês ia ter com ele para receber o meu soldo, limitava-se a roncar com o nariz e a fulminar-me com os olhos, mas antes que a semana chegasse ao fim certamente reconsiderava e lá vinha trazer-me a moeda de quatro dinheiros, repetindo as ordens de estar atento ao marinheiro duma perna só. Nem preciso contar como tal personagem me assombrava em sonhos. Em noites de tormenta, quando o vento abalava os quatro cantos da casa e as vagas rugiam na enseada e contra as arribas, via-o com mil formas e mil expressões diabólicas. Umas vezes tinha a perna cortada pelo joelho, outras pelo quadril; depois era uma espécie de criatura monstruosa nascida só com a perna única, ao meio do corpo. Vê-lo saltar e correr e perseguir-me por cima de sebes e valas era o pior de todos os pesadelos. Em suma, era um preço bem caro para a minha moeda mensal de quatro dinheiros, que tinha de pagar na forma de tais visões abomináveis. Mas, embora andasse tão aterrorizado pela ideia do marinheiro duma perna só, era eu quem do próprio capitão tinha menos medo do que qualquer outra pessoa que o conhecesse. Noites havia em que tomava um pedaço mais de rum com água do que a cabeça lhe podia suportar; então, ficava por vezes sentado a cantar aquelas velhas cantigas do mar maliciosas e depravadas, sem se importar com ninguém; mas por vezes encomendava rodadas de copos, obrigando todos os presentes assustados a ouvir-lhe as histórias ou a acompanhá-lo em coro». Robert Louis Stevenson, A Ilha do Tesouro, 1882/1883, Edição Clube do Autor, 2015, ISBN 978-989-845-208-5.

Cortesia ClubedoAutor/JDACT