sábado, 29 de outubro de 2016

Uma outra representação da Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa: a tábua do martírio de S. Sebastião, de Gregório Lopes. Luísa Trindade. «Era, de facto, o nervo comercial de Lisboa, nela se concentrando lojas de panos e sedas de todas as sortes»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Rasgada no reinado de Afonso III e reformulada algumas décadas depois por Dinis I, que nela concentrou o grosso do seu investimento imobiliário, a Rua Nova, invulgarmente ampla e rectilínea, sobretudo no contexto de uma cidade onde a marca islâmica seria então ainda vincadamente presente, foi, durante toda a Idade Média, a milhor e mais prinçipall da dicta çidade, para usarmos o testemunho de Afonso V. O seu calcetamento, acto então ainda muito circunscrito e pouco comum, foi ordenado por João II que seguiu a obra com particular interesse, não só mandando fazer uma planta pyntada em papell de 6 metros de comprimento, a partir da qual ele e os seus colaboradores mais próximos discutiam o andamento da obra, como também encomendando a pedra na região do Porto, seguindo o modelo que João I usara na Rua Formosa, acréscimo imenso de esforço e de custo só justificáveis pela excepcionalidade da rua no panorama urbano de então
Hieronymus Münzer, João Brandão de Buarcos ou Damião de Góis são apenas alguns dos que a enalteceram por motivos diversos: pela largura ímpar, atingindo quase 9 metros; por ser ornada de ambos os lados de altos edifícios, todos de três e quatro sobrados, ou por nela se juntarem todos os dias, comerciantes de todas as partes e povos do mundo. Era, de facto, o nervo comercial de Lisboa, nela se concentrando lojas de panos e sedas de todas as sortes, tendas de especiarias de todo o género, boticas ou livreiros. Nos sobrados de cima, continuando a seguir João Brandão, viviam inúmeros mercadores, homens muito abastados e de grossíssimas fazendas, dinheiro e trato. O elevado número de escravos, que levou Baccio da Filicaia a caracterizar Lisboa como um jogo de xadrez, tantos os brancos quantos os negros, as chamadas negras de canastra que, transportando os despejos domésticos à cabeça, espantavam os visitantes, ou a forma como os portugueses de bem trajavam, com longas capas negras que lhes deixavam apenas os braços de fora, como relata Jan Taccoen em 1514, são uma nota dominante nesta, como noutras representações das zonas centrais e ribeirinhas da cidade de Lisboa
Todavia, mais do que uma análise detalhada da obra ou do ambiente cosmopolita que evoca, importa aqui referir como o ângulo representado, uma vista frontal do casario, permite, pela primeira vez, observar em toda a sua especificidade a famosa Rua Nova dos Mercadores. Os edifícios de quatro e cinco pisos, ou de três e quatro sobrados para usar a terminologia da época, com lojas e sobrelojas na galeria térrea formada por esteios de pedra e madeira, mais de cento e quarenta e nove de acordo com contagem do século XVIII; o revestimento parcial das frontarias com madeira, os chamados fromtaes de tavoado ou os ressaltos das fachadas, soluções construtivas tipicamente medievais; a diferente altura dos edifícios ou a tipologia das janelas, cerradas por portadas de madeira basculantes, muitas delas dotadas de pequenas aberturas centrais, destinadas a deixar passar alguma luz, são características que, em conjunto, descrevem uma realidade concreta, documentam o espaço e o tornam reconhecível. Curiosamente, todas essas características, sem excepção, marcam presença na tábua do Convento de Cristo, realizada cerca de quarenta anos antes. O cotejo entre ambas as pinturas permite-nos abandonar a ideia de Gregório Lopes ter representado uma cidade anónima, identificando, pelo contrário, a representação da cidade habitada pelo próprio pintor, recorde-se que residia em Lisboa, junto ao mosteiro de S. Domingos, a escassas centenas de metros da Rua Nova dos Mercadores. Identificação que me parece ter passado até agora despercebida mas que, verdadeiramente, só seria possível a partir da descoberta da tela flamenga, ocorrida há cerca de cinco anos atrás. Lisboa quinhentista, portanto. Essa cidade que, sobretudo entre o Rossio e a recém renovada frente ribeirinha, com passagem obrigatória pelas ruas Nova d’El Rei e Nova dos Mercadores corporizava, na década de 1530, um dos principais entrepostos comerciais de toda a Europa, onde diariamente fundeavam caravelas e carracas vindas de todas as partes do mundo conhecido Lisboa, cabeça do Império, podia certamente repartir o espaço narrativo da tábua com Roma, essa outra caput mundi. Síntese de dois espaços que, simultaneamente, figuravam de forma particularmente legível o percurso da famosa relíquia de S. Sebastião: de Roma a Lisboa». In Luísa Trindade, Uma outra representação da Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa: a tábua do martírio de S. Sebastião de Gregório Lopes, Revista Medievalista, Nº 20, JUL-DEZ, 2016, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT