terça-feira, 25 de outubro de 2016

O Labirinto Perdido. Kate Mosse. «Desconcentrada, Alice se levanta e estica as pernas esguias, levemente queimadas de sol. Vestindo uma calça, jeans cortada, uma camiseta branca justa e sem mangas e um boné»

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Sinopse
«Uma história de coragem, destino e traição na França contemporânea e na medieval. Julho de 1209: na cidade francesa de Carcassonne, uma moça de 17 anos recebe do pai um misterioso livro, que ele diz conter o segredo do verdadeiro Graal. Embora Alais não consiga entender as estranhas palavras e símbolos escondidos naquelas páginas, sabe que seu destino é proteger o livro. Serão necessários enormes sacrifícios e uma fé inabalável para preservar o segredo do labirinto, um segredo que remonta a milhares de anos e aos desertos do antigo Egipto. Julho de 2005: durante uma escavação arqueológica nas montanhas ao redor de Carcassonne, Alice Tanner descobre dois esqueletos. Dentro da tumba na qual repousavam os antigos ossos, experimenta uma sensação de malignidade impressionante e percebe que, por mais impossível que pareça, de alguma forma, ela é capaz de entender as misteriosas palavras ancestrais gravadas nas pedras. Porém, é tarde demais, Alice acaba de desencadear uma aterrorizante sequência de acontecimentos incontroláveis, e agora seu destino está irremediavelmente ligado à sorte dos cátaros, oitocentos anos atrás. Em Março de 1208, o papa Inocêncio III convocou uma cruzada contra uma seita de cristãos do Languedoc. Hoje em dia, seus membros são geralmente conhecidos como cátaros. Eles chamavam a si mesmos de bons chrétiens; Bernard de Clairvaux os chamava de albigenses, e os registos inquisitoriais se referem a eles como heretici. O objectivo do papa Inocêncio era expulsar os cátaros da região do Midi e restaurar a autoridade religiosa da Igreja Católica. Barões franceses do norte que abraçaram sua cruzada viam nela uma oportunidade de obter terras, riqueza e vantagens comerciais subjugando a nobreza do sul, conhecida por sua feroz independência. Embora o princípio das cruzadas fosse um aspecto importante da vida cristã medieval desde o final do século XI, e em 1204, durante o cerco a Zara na quarta cruzada, os cruzados houvessem atacado irmãos cristãos, era a primeira vez que se pregava uma guerra santa contra cristãos e em solo europeu. A perseguição aos cátaros levou directamente à fundação da Inquisição (maldita) em 1233, sob os auspícios dos dominicanos, os frades negros. Quaisquer que tenham sido as motivações religiosas da Igreja Católica e de alguns dos líderes cruzados laicos, como Simon de Montfort, a cruzada albigense foi em última análise uma guerra de ocupação, e marcou uma guinada na história do que hoje é a França. Ela significou o fim da independência do sul e a destruição de muitas de suas tradições, ideais e modos de vida. Assim como o termo cátaro, a palavra cruzada não era usada nos documentos medievais. Estes se referiam ao exército como a Hoste, ou l’Ost em occitano. No entanto, como ambos os termos são hoje de uso corrente, empreguei-os algumas vezes para facilitar as referências. Durante o período medieval, a langue d’Oc, origem do nome da região do Languedoc, era a língua falada na região do Midi, da Provença à Aquitânia. Era também a língua da Jerusalém cristã e das terras ocupadas pelos cruzados a partir de 1099, e era falada em algumas partes do norte da Espanha e do norte da Itália. A língua occitana tem um parentesco estreito com o provençal e o catalão. No século XIII, a langue d’oil, precursora do francês moderno, era falada nas regiões setentrionais do que é hoje a França. Durante as invasões do sul pelo norte, a partir de 1209, os barões franceses impuseram a sua língua à região que conquistaram. A partir de meados do século XX, houve um ressurgimento da língua occitana, conduzido por escritores, poetas e historiadores como René Nelli, Jean Duvernoy, Déodat Roché, Michel Roquebert, Anne Brenon, Claude Marti e outros. Existe uma escola bilíngue occitano/francês em La Cité, no coração da cidade medieval de Carcassonne, e a grafia occitana de cidades e regiões figura ao lado da grafia francesa nas placas rodoviárias. Em Labirinto, para distinguir entre os habitantes do Pays d’Oc e os invasores franceses, usei occitano ou francês conforme o caso. O resultado é que alguns nomes e lugares aparecem tanto em francês quanto em occitano, por exemplo, Carcassonne e Carcassona, Toulouse e Tolosa, Béziers e Besièrs.

4 de Julho de 2005. Pic de Soularac. Montes Sabarthès. SW da França
Um único filete de sangue escorre pela parte interna muito pálida do braço dela, como uma costura vermelha num tecido branco. De início, Alice pensa que é só uma mosca e não liga. Numa escavação, os insectos são ossos do ofício, e por algum motivo há mais moscas no alto da montanha onde ela está trabalhando do que na escavação principal mais abaixo. Então uma gota de sangue pinga sobre a sua perna nua, explodindo como um fogo de artifício no céu em noite de ano-novo. Dessa vez ela olha e vê que o corte na parte interna de seu cotovelo abriu de novo. É uma ferida funda, que não quer sarar. Ela dá um suspiro e aperta mais contra a pele o curativo. Em seguida, como não há ninguém por perto para ver, lambe a mancha vermelha no próprio pulso. Fios de cabelo, claros como açúcar queimado, soltaram-se de baixo de seu boné. Ela os ajeita atrás das orelhas e enxuga a testa com o lenço, antes de apertar outra vez o rabo de cavalo na nuca. Desconcentrada, Alice se levanta e estica as pernas esguias, levemente queimadas de sol. Vestindo uma calça, jeans cortada, uma camiseta branca justa e sem mangas e um boné, ela mais parece uma adolescente. Antigamente importava-se com isso. Agora, à medida que vai ficando mais velha, entende as vantagens de parecer mais jovem do que de facto é. Os únicos toques de elegância são os seus delicados brincos de prata em forma de estrelas, que reluzem como paetês. Alice desenrosca a tampa de seu cantil. A água está morna, mas a sede é tanta que ela não liga e sorve longos goles. Lá em baixo, o calor forma uma névoa que cintila sobre o asfalto esburacado da estrada. Acima dela, o céu tem um azul infinito. As cigarras prosseguem o seu coro incessante, escondidas na sombra da erva seca». In Kate Mosse, O Labirinto Perdido, Labyrinth, 2005, Publicações dom Quixote, 2006, ISBN 978-972-202-969-8.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT