sexta-feira, 7 de outubro de 2016

O Diário Perdido de Don Juan. Douglas Carlton Abrams. «Quanto a mim, tinha necessidade de um cocheiro mas faltavam-me as posses para pagar a um adulto. Não teria mais de vinte e dois anos, e tornei-me como um irmão mais velho de Cristóbal»

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Uma centelha de paixão
«(…) Afaguei-lhe a maciez da face com o indicador. Lamento não poder dar-vos mais que uma noite de companhia, disse, mas é quanto posso dar a qualquer mulher. Don Juan, destes-me mais do que o meu marido jamais deu. Ouvira dizer que, nos vossos olhos, vê uma mulher pela primeira vez a sua verdadeira beleza. Elvira engoliu a saliva. Não era mentira nenhuma. Sorri e fiz uma vénia, ciente de que a alma de cada mulher é um tesouro único. Tendo crescido como órfão num convento, cedo descobri essa riqueza, que poucos homens têm o privilégio de contemplar. Foi nas palavras da Irmã Teresa, tanto como nos beijos da sua boca, que aprendi a escutar o murmúrio sossegado das alegrias, dos medos, dos anseios de uma mulher. O tanger dos sinos da igreja mais próxima foi como uma chibata a vergastar-me a pele. O meu cocheiro, Cristóbal, bateu à porta com impaciência. Eu sabia que a minha oportunidade de prestar homenagem ao Rei e conquistar o seu favor me estava a escapar por entre os dedos. Lamento ter de partir tão bruscamente, disse, pondo na cabeça o meu chapéu de plumas. O lugar para onde vou está a léguas de ser tão aprazível como este de onde me vou. A viúva recostou-se no seu leito com um sorriso de assentimento. Deitei mão à capa e à espada e saí num relâmpago.
Cristóbal é mais alto que eu a medida de uma cabeça, mas mais magro, e tem os membros tortos como os de um espantalho. Persignou-se com nervosismo, como sempre que me vê depois de uma das minhas aventuras amorosas. Outra viúva, senhor?, perguntou num estremecimento. Suponho que acreditas nos padres, quando dizem que uma viúva há-de viver como freira até se reunir no Céu com o seu marido… Pois deixa que te conte um segredo, Cristóbal: o desejo de uma mulher não fenece antes do seu último suspiro. O meu cocheiro corou e disse: a audiência, senhor. De que estamos à espera?, retorqui sorrindo, e saltei para a carruagem. Depressa! Cristóbal incitava a égua, sem dúvida temendo pela minha vida, embora não apenas por ela: os mortos não precisam de cocheiro. A Bonita compreendeu a nossa urgência tão-só pelo tom de voz, singularmente elevado, de Cristóbal, e largou a galope pelas ruas estreitas de Lebrija, com as rodas da negra carruagem a roçarem a cal dos muros. Ao contrário de outros cocheiros, Cristóbal não usa chicote. Tem um modo de sussurrar ao ouvido de um cavalo que o leva a fazer tudo o que pretende. Se é certo que, com os cavalos, goza deste dom, as mulheres, contudo, apavoram-no. Tal receio, sempre o teve, desde o dia em que o encontrei, no Arenal, era ainda um rapazito de doze anos. Fugira de casa e procurava trabalho.
Quanto a mim, tinha necessidade de um cocheiro mas faltavam-me as posses para pagar a um adulto. Não teria mais de vinte e dois anos, e tornei-me como um irmão mais velho de Cristóbal, enquanto juntos nos íamos fazendo homens. A carruagem corria veloz pela tosca estrada de terra que conduzia a Sevilha e as rodas levantavam pó em todas as direcções. Volvidas menos de duas horas de árdua cavalgada, divisei pela janela os belos muros da cidade, que a luz do poente estival incendiava de rosa e escarlate. Muralha adentro, a Giralda erguia-se aos céus. No cimo da torre assomava uma mulher de bronze, símbolo da fé da nossa Sevilha, com uma cruz numa das mãos e uma fronde de palmeira na outra. Ao lado do campanário, o círculo da Lua, que na véspera estivera cheia, repousava sobre a catedral como uma mulher satisfeita no seu leito celeste. Aproximávamo-nos de uma espessa multidão reunida no Prado de San Sebastián, não longe das muralhas da cidade, quando um fumo negro de súbito ocultou a Lua. O odor da carne queimada ofendeu-me o nariz e revirou-me o estômago. Olhei em torno apreensivamente, mas não havia outra estrada e Cristóbal sabia que era tarde para fazer meia-volta. A Bonita teve de parar, rodeados que estávamos de todos os lados pela turba que assistia, de boca aberta e olhos fulgentes de fascinação, a um espectáculo infernal». In Douglas Carlton Abrams, O Diário Perdido de Don Juan, 2007, Editorial Presença, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-233-768-7.

Cortesia de EPresença/JDACT