quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Mau Tempo no Canal. Vitorino Nemésio. «Quando eu voltar é outra coisa. Se fizer concurso... Se for nomeado... Mesmo que fique número três... O número três deve ir para Bragança; é frio... Dali a um ano..., não?»

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A serpente cega
«(…) O Açor parecia realmente despido da sua pele de cão de guarda, de olhos espantados e fitos naquele par misteriosamente formado, com uma trepidação nas beiçanas pendentes, escorridas de baba. Como que lhe tinham transtornado o campo de operações: a sombra inimiga estava de portas adentro de um lugar que ele tinha obrigação de manter limpo de todos os vultos que ali se atrevessem sozinhos, mas em cuja população acompanhada pelos donos não tinha nada que cheirar. E se conservava um resto de gana no lombo e no focinho anelante, traduzida num rosnar que o vento levava em dueto, é que há sempre intervalo entre um corte de corrente e o parar do motor. Então Margarida tomou mais consciência da situação em que estavam, e, tornada ao ponto em que a sua recente intimidade com João Garcia recuava sobre o antigo constrangimento de dois estranhos, disse-lhe: vá-se! Podem ver da estrada... Não vêem. Comigo no caminho é que é pouco prudente. Agora que nos vamos separar, sempre te digo que temos facilitado um pouco. Esta gente da vizinhança é linguareira; mas como havia de ser? Quando eu voltar é outra coisa. Se fizer concurso... Se for nomeado... Mesmo que fique número três... O número três deve ir para Bragança; é frio... Dali a um ano..., não? Ficou à espera, tomando-lhe a mão com doçura. Margarida ouvia-o como se estivesse longe e chegasse muito devagar ao calor de tais propostas. Deus sabe o que nos espera, daqui até lá... E, vendo-se outra vez entre João Garcia e o cão ainda desconfiado e coçando uma orelha à pata, aplicou o ouvido à estrada. Foi ao muro: está sempre a passar gente. João Garcia espreitou, na ponta dos pés; dois vultos dobravam o começo da curva, seguidos das sombras disformes: meu tio Ângelo e o Pretextato... Vão dar a sua volta. Quanto mais perto estivermos da lâmpada, pior! Ao nome de Ângelo Garcia, Margarida perdeu o alvoroço em que a presença do namorado e os nervos do cão a punham. A recordação do maricas acordava nela a soberba dos Clarks, aquele sentimento maciço, enjoado e um pouco cínico, que contribuíra para correr Januário Garcia do escritório da casa Clark & Sons e envolvia a família Garcia num desdém mais snobe do que odiento. Representou-se-lhe Ângelo de bigodinho frisado a ferro, faces de menina, o cabelo ruço e melado sob o chapéu de coco, correndo as casas da Horta com o seu pezinho atrasado. A ideia do avô sempre doente em casa ligou-se-lhe à rápida repulsa. O pai, fora. A mãe, sentada ao pé da voltam do avô, embrulhada no cachiné das noites compridas, com uma irritação a que o seu feitio romântico dava uma poesia desafinada, das pessoas que choram e riem sem ter de quê. Olhou para o casarão engolido no escuro da quinta, apenas visível pela esteira de luz que vinha do quarto do avô quebrar-se na janela da saleta. Um pé-de-vento abalou as faias e os cedros, levantando-lhe a ponta do casaco e uma mecha de cabelo. João Garcia tinha de novo a mão dela nas suas, mas aquela pausa como que a cortara do braço de Margarida. Ia a dizer-lhe outra vez que se fosse, atraída para os lados de casa, quando sentiu melhor o calor daquele homem parado no meio das árvores, ali ao pé dela e a uma distância que a viagem de Lisboa tornava saudosa e sem fim. João Garcia pareceu entender este íntimo movimento e sossegou-a: não tenhas medo. Então não estou ao pé de ti e não hei-de voltar daqui a meses?... Mas há tão pouco que nos falamos, e entrares na quinta assim de noite! Se nos vissem... Teu pai vem tarde. Às vezes entra pelo portão da canada... Salto o muro. Os cedros tornaram a ramalhar bruscamente. Agora as guinadas do vento repetiam-se. Vinha certeiro no silêncio e experimentava fortemente as árvores, que durante um segundo descreviam um círculo cheio, como piões no torpor. Mas entre duas lufadas a quinta cerrava-se outra vez; ficava tudo compacto, debaixo de um bafo. Um cheiro a lava salgada e a seiva de cedro inebriava». In Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, 1944, Bertrand, BIS, colecção BIS, 2010, ISBN 978-989-660-041-9.

Cortesia de Bertrand/BIS/JDACT